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O Mundo Agora

Divisão das sociedades árabes dificulta a democracia

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Revoluções não se fazem do dia para a noite. Quem achava que a “primavera árabe” ia ser um florescer imediato de democracias idílicas esquecia essa realidade básica. Mas antes de enterrar apressadamente os grandes movimentos de emancipação no mundo árabe, ou falar de “inverno árabe”, seria melhor tentar entender o que está acontecendo. E a primeira pergunta é evidente: será possível instaurar regimes democráticos no Egito, na Tunísia, na Líbia ou na Síria ?A intervenção sangrenta do Exército egípcio contra o governo eleito comandado pela Irmandade Muçulmana do presidente Morsi é claramente um golpe militar. O problema é que este golpe foi – e continua sendo – apoiado por uma parcela significativa da população. Justamente aquela que clama por mais democracia e que denunciava a tentativa da Irmandade de tomar conta de todos os poderes do Estado.Apoiar uma ditadura militar para combater uma ditadura religiosa não parece uma posição muita coerente. Sobretudo que essas mesmas pessoas também estavam na vanguarda das manifestações que derrubaram o autoritarismo militar de Hosni Mubarak há dois anos. Hoje, é o movimento islâmico que se arvora defensor da democracia contra o golpe do general Al-Sissi.Essa confusão geral é sinal de que, por enquanto, a questão política central no Oriente Médio e na África do Norte não é a construção de instituições democráticas para organizar o diálogo entre todas as forças e ideologias políticas existentes. Pensar que hoje as sociedades árabes são entidades homogêneas é um engodo ou puro delírio ideológico. Na verdade, elas estão profundamente divididas em dois campos políticos antagonistas. Por um lado, os grupos que representam uma elite e uma classe média urbana, com acesso ao mercado de consumo, à mídia moderna e às informações globais. Milhões de pessoas cujo sonho é viver como os seus semelhantes no mundo ocidental ou asiático. Pessoas que reivindicam mais liberdade individual, mais oportunidades e mobilidade social, e não estão afim de aceitar que suas vidas sejam arregimentadas por um governo e uma ideologia de cunho religioso. Uma parte importante das sociedades árabes e muçulmanas, inclusive muçulmanos praticantes, já está profundamente “ocidentalizada”.Mas a outra parte também existe. São os movimentos islamistas, moderados ou radicais, que clamam que “o Corão é a solução”. Paradoxalmente, não são movimentos religiosos tradicionais, e nem uma volta ao passado. Os islamistas utilizam narrativas e símbolos religiosos para compor um projeto político de poder. É mais ideologia do que religião – e as autoridades religiosas tradicionais sempre desconfiaram dos grupos radicais salafistas e da própria Irmandade Muçulmana. Não há dúvida, porém, que os islamistas têm uma audiência enorme, sobretudo nos meios rurais e nas pequenas cidades aonde o modo de vida das pessoas ainda está enquadrado pelas estruturas sociais tradicionais que deixam pouco espaço para a liberdade individual. O problema é que esta ideologia religiosa só poderia prosperar numa sociedade controlada de cima para baixo, onde o indivíduo é sacrificado no altar de um “bem comum” definido pelos próprios islamistas. Não é por acaso que a Irmandade é incapaz de apresentar um projeto econômico.Qualquer sociedade dinâmica, aberta, pluralista, é um perigo mortal para o islamismo ideológico. Mas isto também significa que ela não tem condições de criar crescimento econômico e que a solução para os problemas da população só é vista em termos de assistencialismo e caridade islâmica.Portanto, não há diálogo democrático possível entre os dois lados. Por enquanto, a vitória de uma das partes significaria que a outra seria esmagada. Mas também não é possível voltar às ditaduras do passado. Foram elas, justamente, que promoveram a “ocidentalização” individualista de seus países para combater a força das redes assistenciais dos movimentos islâmicos. E foi essa juventude ocidentalizada, cansada das ditaduras, e não os islamistas, que foi a principal protagonista da “primavera árabe” contra os regimes autoritários.A queda de braço, por vezes sangrenta, entre essas duas visões, não vai acabar tão cedo. Sobretudo porque um equilíbrio democrático só poderá ser atingido numa situação onde o pluralismo político e religioso seria a regra, e numa economia aberta que promova as iniciativas individuais e o crescimento econômico.Para os adversários dos islamistas, isto exigiria aceitar que as ideologias de cunho religioso também são legítimas dentro de uma democracia, inclusive podendo participar dos governos. Para os partidos islamistas é muito mais difícil: significaria ter que renegar os seus princípios mais fundamentais.Infelizmente, enquanto isto não acontecer, os dois lados vão ter que sofrer enfrentamentos violentos e ditaduras instáveis que, na hora da repressão, não vão distinguir uns e outros. Uma só luzinha no fundo do túnel: a Tunísia, onde os islamistas no poder aceitaram negociar a composição de um novo governo com seus adversários “laicos”.  

Manigestações da Primavera Árabe em vários países.
Manigestações da Primavera Árabe em vários países. Wikipedia
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