Acessar o conteúdo principal
Colheita/França

França: conheça o ritual da colheita das uvas usadas para fazer vinho e champanhe

Nossa repórter acompanhou a "vendange", colheita das uvas na França que serão usadas pra fabricar os melhores vinhos do mundo e acontece todo mês de setembro. Neste ano excepcionalmente quente, o trabalho começou em agosto.

Divisão do trabalho durante a colheita
Divisão do trabalho durante a colheita RFI/ M. Bechara
Publicidade

Na margem oeste do La Marne, o principal afluente do Sena, uma sinfonia metálica se desenvolve todas as manhãs deste setembro de 2018, um mês excepcionalmente quente, mas que surpreendeu os vinicultores franceses produzindo uvas de qualidade superior, as chamadas uvas “millénaires”.

O barulho rítmico vem das lâminas dos alicates do “vendangeurs”, que vêm de todas as partes da Europa colher uvas, nesta época do ano. A RFI Brasil acompanhou um dia de trabalho junto aos agricultores franceses e seus funcionários da região de Champagne, na França, dos vinhedos ao “pressoir”, o grande galpão onde as uvas são despejadas e trituradas no processo inicial de fabricação da bebida mais glamurosa do mundo.

No lugar onde é produzido o champanhe – “único e inigualável”, fazem questão de destacar todos os prospectos de turismo locais -, as pessoas acordam cedo nesta época do ano. Estamos em Charly-sur-Marne, no início da região de Champagne, a uma hora de trem de Paris, ainda no norte da França.

Às 8h em ponto, já estamos de pé sobre as colinas, repletas de fileiras milimétricas com cachos de uvas abundantes, claros e escuros. As vinhas de Meunier, Pinot Noir e Chardonnay, os três tipos de uvas que compõem o champanhe, recebem cuidados especiais desde o início da primavera, quando as flores ainda não pipocaram nos vinhedos e uma fina camada de gelo matinal é produzida pelos agricultores, que borrifam água para proteger as árvores. Técnica secular e invenção se misturam nos campos franceses, antes, durante e depois da colheita.

"A natureza é muito sábia", explica Cécile Dézimer, 40 anos, da sétima geração de uma família de agricultores de Champagne e proprietária da região de cultivo de 13 hectares, visitada pela reportagem. "No outono, as folhas das videiras caem, devolvendo ao solo os minerais necessários para fertilizá-lo.

No início da primavera, o gelo fino acaba por conservar as árvores que, no inverno, se encontram completamente adormecidas e protegidas", conta, enquanto anota num prontuário o peso de cada “paillette”, ou seja, cada conjunto de 12 caixas de uvas que chegam ao depósito em pequenos veículos motorizados, conduzidos por Guillaume, marido de Cécile. "Quando der 4 toneladas, despejamos no ‘pressoir’, você vai ver", antecipa Cécile. "Neymar, Neymar!", cantarola Guillaume, ao saber que sua esposa conversa com a reportagem brasileira, levando as pesadas caixas de uva para o "triturador".

Colheita é inspecionada

O espetáculo é mesmo impressionante, no meio da atmosfera familiar. Dois jovens funcionários vestem coletes de segurança antes de subir para a plataforma no alto, onde recebem as caixas de uvas recém-colhidas naquela manhã. Eles precisam ser jovens e ágeis, o trabalho exige leveza sobre a passarela metálica umedecida pelo suco das uvas e a força necessária para não derrubar o material. Uma forte amarração com ganchos presos aos coletes garantem a segurança dos trabalhadores, que muitas vezes também são vizinhos, colegas, amigos de infância. Em duplas, eles pegam as caixas cheias de uvas e jogam seu conteúdo na esteira do “triturador”, o “pressoir”.

Na França, não são os agricultores que decidem a hora de começar a colher. Patrimônio nacional, os vinhedos são inspecionados e analisados em laboratório por um órgão específico, o Comitê Interprofissional do Vinho de Champagne (CIVC). “Cada região deve seguir uma data específica para começar a colheita, de acordo com o tipo de uva: Meunier, Pinot Noir ou Chardonnay”, detalha a proprietária.

“Nasci em 1978, e, nesta época, a colheita era feita em outubro, para você ter uma ideia”, diz Cécile sobre a influência das mudanças climáticas sobre as uvas. “Este é o quarto ano em que começamos as "vendanges" em agosto, e esse ano foi especialmente quente, produzimos uma enormidade de uvas, ao contrário, por exemplo, do ano passado”, relata a proprietária. “A maior parte das colheitas acontece, normalmente, entre o 10 e o 15 de setembro”, afirma.

Divisão do trabalho durante a colheita

Uma das regras de ouro das colheitas francesas é ficar de olho no “sécateur”
Uma das regras de ouro das colheitas francesas é ficar de olho no “sécateur” RFI/ M. Bechara

“Caisse, caisse!” (“Caixa, caixa!”), grita o chefe de equipe do alto de uma das colinas que oferecem uma visão impressionante para o vale, cheio de fileiras com as vinhas. A sinfonia da vendange continua e chegou a hora de chamar pela intervenção dos “débardeurs”, um grupo de quatro homens, que se revezam em trios (um descansa, a cada subida) e que, com a ajuda de um pequeno veículo motorizado, vêm buscar as caixas vermelhas enfileiradas repletas de uvas. Nada acontece por acaso durante a vendange, o trabalho é duro, ritmado, e obedece uma ordem específica que garante o rendimento.

“Existem basicamente três tipos de trabalhadores nos vinhedos”, explica Valentin, 22 anos, estudante de Educação Física, cuja família mora na região. “Teremos os cortadores, para cortar os cachos de uvas e encher as caixas; os “débardeurs” (“estivadores”), uma profissão que não é para todo mundo, uma vez que eles vão manipular caixas de uvas de 45 a 60 quilos a dois, durante todo o dia. Ontem, por exemplo, eles manipularam cerca de 20 toneladas de uvas, não é pouco”, explica. “No fim, temos os ‘pressuristes’ (trituradores), grupo do qual faço parte, que se ocupa posteriormente de encher a bacia do ‘pressoir’ com as uvas, e extrair o suco das uvas. As sementes que são coadas também são aproveitadas, para fazer produtos de beleza, por exemplo”, conta Valentin, designado pela dona do cultivo para acompanhar a reportagem da RFI Brasil.

Colheita das uvas
Colheita das uvas RFI/ M. Bechara

Os “débardeurs”, homens fortes entre 25 e 50 anos, são na verdade moradores da região e de outros lugares da França, que possuem outras profissões durante o resto do ano, mas preferem dedicar todo o seu período de férias às vendanges. Alguns fazem isso há mais de 20 anos, como Christophe. “Não tenho certeza que, se eles não viessem, eu viria”, diz, apontando seus amigos. Aos 48 anos, ele utiliza um cinturão ortopédico, para “prevenir problemas”. “É a idade”, brinca Christophe, que ao lado de Stephan, outro “débardeur”, trabalha como cozinheiro no resto do ano.

Valentin, assim como vários outros jovens franceses, aproveitam as férias de verão no Hemisfério Norte para trabalhar: “não posso me dar ao luxo de pedir dinheiro para meus pais com esta idade”, explica. “Frequento as vinhas desde que tenho 16 anos, a idade legal para se trabalhar na França. Normalmente, a colheita acontece justo no momento da volta às aulas (em setembro), e nós, estudantes, não podemos participar. Em 2018 tivemos sorte, porque o clima e o sol forte anteciparamo processo”, conta. Pierre, 20 anos, é “cortador” neste segundo ano que trabalha na colheita. “O que dói são as costas e as pernas”, diz o jovem. “Aprendi vendo e praticando”, diz, que se destaca no meio dos vinhedos pelos enormes headfones brancos nas orelhas, como se cortasse as uvas ao ritmo de uma boa batida eletrônica.

Mas, para além dos jovens da plantação de Cécile, a realidade da colheita pode ser dolorosa, especialmente para estrangeiros não acostumados ao ritmo do trabalho. Muitos deles, trabalhando em outros campos da região, tomam diariamente analgésicos, segundo relatos ouvidos pela RFI Brasil na cidade de Charly-sur-Marne, onde muitos se concentram nesta época do ano. Ninguém, no entanto, deseja ser identificado, sendo que alguns não falam nem mesmo francês. Às vezes, nem mesmo inglês.

O ciclo da Natureza nas plantações de uva da França

"Trabalhamos o ano inteiro. Eu recomeço o trabalho logo após a colheita", diz a proprietária Cécile Dézimer. "Quando acabarmos a ‘vendange’, voltaremos imediatamente ao campo para retirarmos os galhos e árvores doentes, para limpar o terreno para a próxima plantação, na primavera. É preciso identificar e substituir cada árvore doente ou morta. Começamos a poda a partir do momento em que as folhas começam a cair", explica. Esta fase do trabalho dura nada menos que quatro longos meses e é feita, obrigatoriamente, sob qualquer temperatura, mesmo no inverno. "Paramos apenas quando o termômetro chega a –8° graus, porque isso pode afetar a madeira da árvore", relata.

Valentin, o jovem “vendageur” de Cécile, explica que uma boa colheita depende também de um trabalho artesanal muito específico, que acontece entre o fim de maio e o início de junho: "nessa época, vamos arrumar as vinhas de um jeito que as uvas possam crescer da maneira correta, e que o sol possa lhes alcançar". O processo de "arrumação" se trata, na verdade, de uma complexa amarração feita com cordas e arames, colocada estrategicamente nas extremidades da árvore: a chamada "paliçage". É um trabalho longo, que exige muita concentração e habilidade técnica, onde os mais experientes se destacam, e que vai garantir a boa exposição das frutas ao sol, além de determinar o posicionamento estratégico dos cachos, para que a colheita possa ser feita rapidamente, esticando os braços para a direita e a esquerda, sem muitos "desvios de rota".

Génévieve, uma das “vendangeuses” mais respeitadas do local, é especialista na arte da amarração. O segredo, para ela, é a “cadência” e “amar essa profissão”. Para ela, ser mulher é uma vantagem durante a colheita: “somos menores, mais leves e mais ágeis”, diz, tímida. Phillipe, o chefe de equipe, é o sogro da proprietária e dita o ritmo das colheitas há mais de 20 anos. “Sou responsável por posicionar as pessoas nas vinhas, de observar como eles cortam, sou obrigado a dar o ritmo da colheita. O ideal é que todo mundo corte exatamente no mesmo ritmo. Mas também ajudo quem tem dificuldades e sou eu que devo intervir se alguém se machuca”, afirma.

Regra de ouro: “onde está seu alicate?”

Uma das regras de ouro das colheitas francesas é ficar de olho no "sécateur", o pequeno alicate manipulado diariamente pelos vendangeurs, e seu principal instrumento de trabalho. Mais do que uma regra, é quase uma obsessão. "No momento quando fazemos uma pausa, ou quando terminamos o trabalho, digo sempre: deixem as caixas no chão e mostrem seus alicates agora! Não consigo nem imaginar um alicate que tenha permanecido por erro ou esquecimento dentro de uma das caixas de uva e que possa furar a membrana do ‘pressoir’ (triturador, que extrai e coa o suco das uvas), seria um pesadelo", diz Phillippe, aposentado que foi diretor de um posto da polícia ferroviária, em Paris, e gerenciou equipes de mais de 300 pessoas. “Tenho experiência com pessoas”, afirma.

O trabalho de um “vendangeur” começa às 8h da manhã e vai até meio-dia, quando há uma pausa para o almoço até 13h30. Neste momento, a colheita é retomada até 17h. Pequenas pausas nada aleatórias são feitas com cafés e pequenos lanches durante o dia. Quem determina o momento da pausa é sempre o chefe de equipe. Ninguém para ou recomeça o trabalho sem as ordens da chefia. Segundo Valentin, um trabalhador nas colheitas ganha um salário mínimo, cerca de € 1.200, ou R$ 5.600 mensais. Por esta razão, explica Valentin, muitos trabalhadores europeus, principalmente poloneses e portugueses, vêm trabalhar nas colheitas francesas. “É uma boa maneira de conseguirem trabalho nesta época do ano na França”, diz.

Por que o champanhe é claro e o vinho tinto não, se são feitos com as mesmas uvas?

As uvas que fazem o champanhe, para quem não sabe, são as mesmas que compõem, por exemplo, o vinho tinto. Qual o segredo então da cor clara desta bebida, uma das mais famosas do mundo? “As uvas do champanhe são sempre colhidas à mão e o processo de fabricação é muito delicado. Não podemos, sob nenhuma hipótese, utilizar máquinas na região de Champagne, somos proibidos de fazê-lo. Desta forma, o pigmento das uvas não se solta com a mesma facilidade, e não ‘mancha’ a bebida”, revela Dézimer, mãe de dois adolescentes, de 17 e 14 anos, que frequentam os vinhedos. “A uva deve chegar o mais intacta possível ao triturador”, complementa.

Segundo Cécile, as uvas Meunier são mais “cítricas”, as Pinot Noir trazem uma leveza, uma refrescância, e as Chardonnay são aromáticas. “Cada produtor tem o seu segredo, a sua dose, a sua mistura, a sua receita”, diz a produtora, que engarrafa a bebida dentro de casa. “Aqui temos mais uvas Meunier na garrafa”, conta. O dia chega ao fim, as caixas se acumulam no “pressoir”, é hora de se despedir das equipes, que começam a se preparar para voltar para suas casas. “Até o ano que vem”, se despedem “vendangeurs” de Cécile Dézimer, na bela região francesa de Champagne.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.