Acessar o conteúdo principal

"A Negrinha": Associação antirracista luta para mudar nome de bairro no sul da França

O ensaísta e militante antirracista franco-senegalês Karfa Diallo foi julgado na semana passada na França por "rebelião". Seu crime? Tentar sensibilizar os habitantes do bairro La Négresse (A Negrinha, em tradução livre), de Biarritz, no sudoeste do país, sobre o racismo em pleno encontro dos dirigentes do G7, o grupo dos países mais ricos do mundo, que ocorreu na cidade em agosto de 2019. Ele tenta mudar o nome do bairro há anos e aproveitou o encontro internacional para se manifestar pacificamente. 

Karfa Diallo é cofundador e presidente da Associação Memórias e Compartilhamentos, que luta pela diversidade cultural e pelo trabalho de memória da escravidão e da colonização.
Karfa Diallo é cofundador e presidente da Associação Memórias e Compartilhamentos, que luta pela diversidade cultural e pelo trabalho de memória da escravidão e da colonização. © Captura de tela
Publicidade

Diallo diz que foi interpelado pela Polícia de maneira violenta e acabou detido para verificação. "Eu fiquei 24 horas detido e agora sou julgado por rebelião. Fui vítima de violência policial", diz o ativista, que considera a abordagem da Polícia arbitrária. 

Antes mesmo de conhecer o veredito deste julgamento, que só será anunciado em 14 de janeiro de 2021, Diallo, que é cofundador e presidente da associação Memórias e Compartilhamentos, já entrou com uma ação no Tribunal Administrativo para mudar o nome desse bairro em Biarritz, baseado na Constituição Francesa e em leis internacionais que asseguram o direito à dignidade humana. 

Em entrevista exclusiva à RFI, Diallo explica que, diferentemente do caso de ruas que têm nomes de traficantes de escravos em que, ao invés de pedir que os nomes sejam trocados, a sua associação faz um trabalho junto às prefeituras para que sejam colocados painéis explicativos, no caso do bairro La Négresse, não se trata de um nome de uma pessoa, mas de "uma atribuição claramente racista".

O bairro La Négresse se chama assim, segundo historiadores, porque, no início do século XIX, a pousada do bairro era administrada por uma mulher de origem haitiana que os soldados de Napoleão I apelidaram de "La Négresse" (A Negrinha). O ativista antirracista sugere que o bairro retome o seu nome basco original, Harausta. 

Denominação racista e misógina

"O nome desse bairro viola as convenções mais essenciais da dignidade humana. É um nome caricatural, que hipersexualiza o corpo das mulheres negras e as estigmatiza", acusa Diallo.

Além disso, ele continua, no bairro há desenhos de mulheres negras com bocas exageradas nos muros, "são clichês misóginos e racistas em pleno espaço público, tudo isso legitimado pela Prefeitura de Biarritz", indica. 

Diallo lamenta que um nome racista e misógino seja utilizado não só para denominar o bairro, como também a estação de trem, a farmácia, a garagem, o posto de pedágio e outros estabelecimentos comerciais, "legitimando o racismo no imaginário coletivo". 

Ele sublinha que, na época em que o bairro começou a ser chamado assim, “os negros não eram seres humanos” e recorda o passado escravista do porto de Bayonne (a 8km de Biarritz), que também participava no comércio de escravos, assim como os de Bordeaux, La Rochelle e Le Havre, cidades onde a associação que ele fundou, em 1998, realiza um trabalho pedagógico sobre a escravidão e o racismo.

"As sociedades evoluíram desde então e hoje temos que respeitar as pessoas. Isso não é trivial. La Négresse se chama assim porque tiraram a identidade de uma mulher negra, lhe colocaram no anonimato denominando-a pela cor da sua pele. É preciso lembrar que Christiane Taubira, ex-ministra da Justiça, entre 2012 e 2016, foi chamada de macaco", alega.

Antes de entrar com o recurso, a associação já tinha tentado convencer a prefeita de Biarritz, Maider Arostéguy (Os Republicanos, de direita) a convocar uma reunião de vereadores para discutir o assunto. Ela teria dito que não cabe a um bordelais (originário de Bordeaux) interferir nos assuntos de sua municipalidade.

Missão pedagógica

Diallo disse que, no caso de Bordeaux, onde ele mora, sua associação já conseguiu que fossem colocados painéis explicativos em 6 das 20 ruas que levam o nome de escravagistas. "A Prefeitura de Bordeaux só reconhece os donos dos navios como escravagistas, mas estamos lutando para que reconheça os outros, que tinham terras na América do Sul, também", diz ele, lembrando que havia escravos também na França continental.

Ele acredita que deve haver um trabalho de reparação. "Este exercício de reparação simbólica é importante. E é um trabalho muito difícil aqui na França, onde as pessoas acham que tirar o termo 'raça' da Constituição resolveria o problema do racismo estrutural, o que é completamente falso". 

"Nós não queremos apagar os nomes destas ruas, nós queremos explicar. Explicar é muito mais eficaz que apagar. Nós queremos que a História seja conhecida", afirma.

Para manter viva a História da escravidão na França, sua associação, em parceria com professores de História e Literatura do ensino fundamental e médio, traçou a rota da escravidão nas cidades onde elas aconteceram e levam os alunos para visitas guiadas. 

Segundo ele, a missão de sua associação, que tem também uma representação em Dakar, capital do Senegal, é principalmente pedagógica. "Nós conseguimos reconhecer o passado escravagista das cidades francesas onde atuamos e também a aprovação, em 2010, no Senegal, da primeira lei africana que reconhece o tráfico de escravos e a escravidão como crime contra a humanidade", conta.

Todo 27 de abril, ele vai a Dakar para celebrar a data e tem como objetivo que essa lei seja aprovada em outros países africanos. "É um combate que precisa ser feito", diz ele, tanto na França quanto nos países africanos. 

Termo ilegal

Para terminar, Diallo e seus advogados argumentam que utilizar o termo "nègre" (crioulo) ou "négresse" (negrinha, crioula) nos dias de hoje na França é ilegal, por ser claramente racista.

No recurso apresentado na Justiça, escrevem: "Derivado do espanhol e do português, o termo 'nègre' entrou na língua francesa no século XVI, durante a primeira fase do período colonial. Até meados do século 19, o termo era comumente usado para se referir a pessoas de pele negra. Intimamente associada à escravidão, esta palavra sempre teve uma conotação extremamente pejorativa, transmitindo a ideia de uma inferioridade da 'raça negra' e participando da justificativa do tráfico e comércio de escravos e, em seguida, da colonização".

"Assim, nas palavras do historiador Gérard Noiriel: 'Associado à escravidão, [o termo 'nègre'] tem uma dimensão infame que perdurou ao longo do tempo (...). Será usado no vocabulário francês até o início dos anos 1950'. Desde a descolonização, este termo - carregando clichês que não eram mais socialmente aceitáveis ​​- tornou-se um tabu e foi gradualmente banido do vocabulário diário", citam.

"Desde a década de 1960, a luta contra o racismo e pela reabilitação da memória de populações vítimas da escravidão e da expansão colonial europeia ocupam um proeminente na política de nosso país. Em 1971, a França ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial (Nova York, 7 de março de 1966)", escrevem.

Em seguida, Diallo e seus advogados citam todas as leis nacionais e internacionais a que este termo infringe, terminando pela mais recente, de 28 de fevereiro de 2017, que transforma o 23 de maio no Dia Nacional em homenagem às vítimas da escravidão colonial.

"Esta evolução do quadro legal reflete o crescente reconhecimento na sociedade francesa da inépcia das teorias racistas e do caráter profundamente desumano e injustificável do tratamento dado às vítimas do tráfico de escravos e da colonização."

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.