“Não somos marginais”, dizem meninos de Montfermeil, cidade retratada no filme “Os Miseráveis”
Enquanto o governo brasileiro usa o aparato público para atacar a cineasta Petra Costa e seu filme, "Democracia em Vertigem", que concorre ao Oscar de Melhor Documentário, o prefeito de Montfermeil, subúrbio parisiense onde se passa o longa "Os Miseráveis", indicado na categoria Melhor Filme Estrangeiro, celebra o longa, ainda que ele não mostre a melhor face da sua cidade: "Estou orgulhoso. É um filme pulsante, justo e verdadeiro”.
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O conservador Xavier Lemoine, do Partido Cristão-Democrata (PCD), de direita, é prefeito de Montfermeil desde 2002 e adora contar a evolução da cidade de lá pra cá. Les Bosquets, o conjunto habitacional onde se passa o filme, por exemplo, não existe mais, diz ele, radiante. “Aqueles prédios foram demolidos, novos foram construídos e os moradores agora reencontraram a dignidade e o orgulho de morar aqui”, explica, dizendo que as mudanças são positivas e, espera, sustentáveis.
Antes, conta o prefeito, os imigrantes - na sua maioria negros e árabes - chegavam na França e iam morar em Les Bosquets, “mas saíam assim que conseguiam melhorar um pouquinho de vida”. “Ninguém queria ficar aqui. Hoje esta rotatividade acabou”, conta Lemoine.
"Favelas verticais"
Os conjuntos habitacionais nas periferias francesas, frequentemente definidos como “favelas verticais”, são vistos como guetos, quebradas perigosas onde não se entra sem ser convidado. Ladj Ly, o diretor do filme “Os Miseráveis”, chegou a Les Bosquets com um ano de idade e mora lá até hoje com sua mulher e três filhos, não muito longe de seus pais e irmãos. É esta a realidade que ela mostra no filme e que, como a reportagem da RFI pôde constatar, está mudando.
Dos prédios enormes onde moravam milhares de pessoas - entre 5.000 e 8.000, metade delas vivendo abaixo da linha da pobreza -, Les Bosquets se transformou em um bairro com ruas limpas e calmas, com prédios de no máximo quatro andares, um cenário muito diferente do que se vê no filme. “Apesar de Ladj Ly ser filho de Montfermeil, o filme foi realizado perto daqui, em Chêne Pointu, bairro de Clichy-sous-Bois, porque em Montfermeil não temos mais esta realidade”, comemora Lemoine.
“O filme mostra bem o que era Montfermeil há 15 anos. Uma Montfermeil que Ladj Ly conheceu bem e eu também”, indica o prefeito.
Capital do crime
Além de ter sido celebrizada pelo romance homônimo de Victor Hugo, que fez da cidade o lugar de encontro entre o protagonista Jean Valjean e Cosette indo buscar água numa fonte, Montfermeil, que conta hoje com 27 mil habitantes e nenhuma sala de cinema, é também conhecida pelos franceses como palco dos motins de 2005.
Esses distúrbios começaram em Clichy-sous-Bois após a morte de dois adolescentes em 27 de outubro de 2005, eletrocutados enquanto se escondiam em um transformador elétrico, para escapar de uma batida policial. Em seguida, o motim se estendeu por Montfermeil e por todo o departamento o Seine-Saint-Denis (o mais pobre do país), antes de tomar municípios de toda a França. Um estado de emergência foi decretado em 12 dias depois.
A barra pesou tanto, que, em 2006, Lemoine colocou em prática uma lei que proibia que três ou mais adolescentes de 15 a 18 andassem juntos em Montfermeil. A medida, polêmica, foi contestada pela esquerda e pelos juristas, e acabou derrubada cerca de um ano depois, por ser inconstitucional. Lemoine defende: “Foi uma medida de emergência. Você não sabe o que era isso aqui nesta época, éramos Chicago”, compara à cidade americana que já foi considerada “a capital do crime”.
Meninos de Montfermeil
Nascidos em sua maioria depois deste episódio, os amigos Alexandre e Reda têm 13 anos, Sacha, Adem e Anwar têm 14, e Jalal, 15. Eles moram em Les Bosquets, este bairro mal visto de Montfermeil, quase na divisa com Clichy-sous-Bois, e ainda sentem na pele a exclusão social do lugar: “As periferias não são sempre como se pensa, apenas com marginais, mas somos representados assim. A gente também tem festas de família e tudo isso”, diz Reda, 13.
“Eles nos consideram como marginais”, reclama Jalal, 15. "Eles quem?", pergunta a reportagem. “Todos os que não moram aqui, os burgueses, os parisienses”, explicam os meninos, em coro. Segundo eles, isso vem de muito antes do filme – que eles viram e adoraram. “A gente anda em grupo e usa as mesmas marcas, Nike e Adidas, e isso é visto como marginal, como ralé”, completa.
“As pessoas só veem o tráfico de drogas, mas aqui é calmo também”, completa Sacha, 14, mostrando as ruas efetivamente tranquilas numa tarde de sexta-feira de um dia ensolarado de inverno.
Almoçando um kebab numa lanchonete próxima, os amigos Robert e Jelan, ambos de 13 anos, têm a mesma opinião: “Nós moramos aqui e o mundo inteiro nos vê. Nossos amigos que fizeram o filme foram para os Estados Unidos, claro que estamos orgulhosos”, dizem, avisando que fazem teatro na escola e adorariam estar no casting de um próximo longa sobre Montfermeil.
No dia em que entraram em férias, na sexta-feira (7), os meninos disseram que não iam viajar. “Vamos ficar por aqui e fazer atividades no ginásio”. Contam que viajam nas férias de verão. No ano passado, um foi para a Suécia e o outro, para a Tunísia, onde têm família.
Em comum, estes adolescentes e o prefeito de Montfermeil têm o fato de estarem todos bastante orgulhosos de que a cidade deles esteja sendo vista pelo mundo inteiro. No caso de Lemoine, ainda pode ser um palanque para a sua reeleição: “Se o filme ganhar o Oscar, vai ter comemoração nas ruas de Monfermeil, sim. Ladj Ly e toda a equipe serão recebidos como se deve”, avisa.
*Como os adolescentes entrevistados são menores de idade, optamos por não colocar as fotos dos meninos.
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