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Crianças/Natal

Brinquedo 'sem gênero' abre filão para crianças neste Natal na França

Mesmo que o mercado infanto-juvenil ainda insista em dividir suas prateleiras entre brinquedos para meninas e meninos na França, uma nova geração de crianças e de pais rompe tabus com um apoio inédito do governo francês.

Para as crianças francesas, a troca de brinquedos e de códigos"de gênero" parecem mais simples do que para o próprio mercado infanto-juvenil.
Para as crianças francesas, a troca de brinquedos e de códigos"de gênero" parecem mais simples do que para o próprio mercado infanto-juvenil. Arquivo pessoal
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Duas associações francesas também lançaram uma campanha neste Natal com a hashtag #DesJouetsPasdesClichés, ou seja, #BrinquedoSemClichês. O objetivo é desconstruir a ideia de brinquedos de meninas ou de meninos. Para conversar sobre o início dessa mudança, ainda minoritária nas grandes lojas e supermercados, mas já adotada na rede de ensino francesa, a RFI conversou com mães brasileiras de crianças francesas ou franco-brasileiras, e com uma associação especializada sobre o assunto.

Os brinquedos "sem gênero" ainda não possuem etiqueta própria na França, mas uma mudança significativa começa a ser notada em seu público-alvo: as crianças. A ideia não é nova: em setembro deste ano, o governo francês publicou um documento com diretivas incentivando a mistura de gênero na representativade e a luta contra o sexismo na fabricação e promoção de brinquedos. A medida parece estar dando frutos.

"É a primeira vez na vida, em 39 anos, que eu vejo um catálogo de brinquedos com bonecas para meninos, ou com meninos brincando de bonecas", diz a cineasta brasileira Naima de Piero, mãe de três francesinhos (ou franco-brasileirinhos): Flora, de 9 anos, Pablo, de 6, e Ernesto, de 3.

Entrevistadas separadamente, a engenheira civil e professora Patricia Enderlé, e Ana Ferrer, assistente em uma escola de educação infantil, engrossam o coro de supresa em relação aos tradicionais catálogos de brinquedos de Natal, destinadas aos pais, na França. A engenheira é mãe de duas meninas: Juliah, de 14 anos, e Lettice, de 11, que "não abre mão da fantasia de princesa".

"Os catálogos de brinquedos, que são distribuídos aqui a partir do mês de outubro e que são uma fonte importante para esse comércio, mostram meninos, por exemplo, brincando com artefatos de cozinha de brinquedo", diz. "Por outro lado, um aspirador ou produtos de limpeza de brinquedo ainda trazem na embalagem imagens de meninas", relata Enderlé.

Ana Ferrer é mãe de três pimpolhos: Clara, de 15 anos, Théo, de 8 e Lili, de 6. "Brinquedo é pra criança, não é para menino ou menina", analisa a assistente pedagógica. "Théo sempre conviveu com os brinquedos da irmã mais velha, que adorava cor-de-rosa, e nunca proibi isso. Nunca deixei ninguém tirar sarro com isso. Quando era criancinha, ele adorava pegar o boá de plumas e dizer que ia 'trabalhar'. Então vai, meu filho, eu dizia", diverte-se ela. "Meus sogros questionavam se eu ia deixar ele brincar com 'aquilo'. E por que não?", pergunta.

Aos 3 anos, Ernesto não larga suas bonecas. Quando a linda Juliah, de 14 anos, passou na concorridíssima Escola de Bombeiros, na França, seus pais ouviram comentários sexistas sobre a escolha da criança. Théo, de 8, adora se vestir de Frozen e interpretar as canções do filme ao lado da irmã caçula.

Se as crianças não reproduzem "naturalmente" os estereótipos de gênero, de onde surgiram as pratelerias "azul e rosa" das grandes redes de supermercado?Existem brinquedos “sem gênero” na França ou trata-se de mera ficção?

“Claro que existem. Aliás, nos anos 1950, antes da explosão da sociedade de consumo, havia muitos brinquedos unissex, com os quais todo mundo podia brincar. A razão pela qual os estereótipos de gênero se desenvolveram no meio dos brinquedos foi uma estretégia do mercado para multiplicar as despesas da família. Por exemplo, um irmãozinho não herdará a bicicleta cor-de-rosa da sua irmã, agora ele terá que ganhar outra bicicleta”, explica Alyssa Ahrabare, porta-voz da associação Oséz le féminisme.

Estratégia de marketing

“Para nós, o problema é que a publicidade e o marketing propagam estes estereótipos. E isso tem um impacto direto sobre o desenvolvimento das crianças, uma vez que as meninas serão trancafiadas no universo da faxina doméstica e os meninos serão educados para a violência e a dominação”, diz Ahrabare.

O governo francês parece concordar com a ativista. Um comunicado do Ministério da Economia de setembro diz que o órgão “procura trabalhar na criação de novos brinquedos, mas também na maneira como são anunciados e como são vendidos, a partir da constatação econômica sobre a presença limitada de mulheres em carreiras científicas na França”.

Florence Barnier, diretora de desenvolvimento da associação Elles Bougent, que promove carreiras científicas entre meninas no país, acredita que o lugar do brinquedo é fundamental na construção de si mesmo e na orientação das crianças. "Se não mostrarmos brinquedos de meninas relacionadas à ciência, elas não serão capazes de se projetar nesses ofícios”.

“Um brinquedo, em si, não comporta elementos de gênero, normalmente. É o marketing que participa dessa dissociação entre meninos e meninas. Isso acontece com a separação de cores, entre o rosa e o azul, e daí surgiu o nome da nossa campanha “MarreduRose” (“DeSacoCheiodoRosa”, em tradução livre). Isso acontece também nas imagens que ilustram as embalagens de brinquedos”, diz Ahrabare.

Para ela, ainda é cedo para colher os resultados. “Tivemos progressos nos últimos anos, mas a segregação através dos brinquedos é um fenômeno massivo. Falar isso já é um avanço, antes nem falávamos disso”, lembra a ativista.

Segundo as mães entrevistadas, os meninos encontram mais dificuldade para irem em direção a brinquedos considerados "de menina" do que vice-versa. “Isso é normal numa sociedade patriarcal, existe uma hierarquia entre meninos e meninas, e tudo o que é considerado como feminino é degradante, em relação ao masculino”, diz a porta-voz.

"Encantada com meu ferrorama"

"Venho de uma família sem muitas crianças, e só fui mãe aqui na França. Mas isso tudo era muito natural para mim, eu não tenho a impressão de ter sido criada com definições de gênero muito marcadas", diz a engenheira civil, que se tornou professora. "Eu adoro trens, trabalhei com trens, e nos anos 1980 eu era encantada com meu Ferrorama", diz Patricia Enderlé, numa referência ao brinquedo que foi o sonho de Natal de crianças da sua geração no Brasil.

Para ela, no entanto, a questão do estereótipo de gênero ainda é difícil na França. "Em lojas mais voltadas para tudo o que é natural e pedagógico, encontram-se brinquedos com menos separação entre meninos e meninas. Isso já tem um tempo. Nas lojas especializadas em brinquedos destinadas ao grande público, no entanto, existe uma pequena evolução", avalia. "Mas ainda é muito marcado. Tudo o que é cintilante, colorido, estará nas prateleiras das meninas nas lojas, e não no corredor misto", diz.

"Na França, muito mais do que no Brasil, pais e mães autorizam que as crianças percorram as prateleiras de brinquedos dedicados ao 'gênero oposto'. Pelo fato da escola, aqui, já abordar isso de uma maneira mais neutra, desde que as crianças são pequenas. Se você vai numa escola infantil francesa, há todos os tipos de brinquedos disponíveis para todas as crianças, carrinhos, bonecas. Minhas filhas desde pequenas sempre tiveram acesso a tudo isso, e eu acho que dá uma neutralidade muito grande", diz Enderlé, que mora na França há 15 anos. "Para os meninos, continua a ser mais difícil. Aqui, fantasia é brinquedo, então você vai ver muita menina vestida de pirata, de super herói, mas ver um menino vestido de princesa vai ser mais difícil", avalia.

Liberdade para escolher 

A liberdade da performance de gênero é presente na escola. "Tanto no ensino público quanto no privado", diz a professora Patricia Enderlé. "A maioria das escolas privadas aqui tem contrato com o governo, então o programa que elas devem seguir é o mesmo", lembra. "Desde o maternal, na França, não vai ter o cantinho rosa e o azul. Desde o ano passado, a pauta de gênero entrou no programa referencial das escolas", conta.

Juliah, de 14 anos, conta que sempre preferiu o playmobil, patins e patinete às tradicionais bonecas. "Uma vez, quando eu tinha 6 anos, eu estava vestida de cachorro, em vez de de princesa, na escola, e os colegas me disseram que aquilo não era coisa de menina", recorda-se. "Ainda não há muito preconceito, por exemplo, na escola. A jovem, que derrubou preconceitos ao ser uma das meninas aceitas na prestigiosa escola de formação dos "pompiers", os bombeiros franceses, diz que, ao se tornar adolescente, aumenta a pressão para ser "mais feminina". "Ainda existem colegas muito imaturos. Quando não correspondemos ao estereótipo de gênero, vemos muito sexismo", conta. "Sobretudo entre os bombeiros. É como no Exército, há muito mais homens do que mulheres", diz.

Horror da cor rosa

“Nunca doei brinquedos”, conta Naima de Piero, mãe de três crianças. “As bonecas da minha filha são herdadas pelo menorzinho. Ele adora, coloca no carrinho para passear. Já minha filha odeia rosa. Uma vez ela queria um carrinho de boneca, mas não queria que fosse rosa. Foi quase impossível de achar. Tive que encomendar na Alemanha”, diverte-se.

“O que eu acho impressionante é que, para menina, você tem o ferro para passar roupa, máquina de lavar... E, para os meninos, coisas de construção. Como se uma menina não pudesse usar um martelo ou um menino não pudesse tocar numa máquina de lavar roupas”, diz Naima. “Tem uma revista feminista para meninas que se chama Tchika que está com uma campanha ótima chamada #UnPouponPourUnGarçon (Uma boneca para os meninos, em português). Mandei uma foto dos meus filhos que foi publicada por eles. Mas o que você ainda vê de reação, até de mães da minha idade, com medo de ‘zoarem’ os filhos na escola, é impressionante. Se a gente não fizer, quem é que vai fazer?”, questiona.

“Moro num bairro popular e o Ernesto, quando sai com o carrinho de bebê, as pessoas ainda olham meio esquisito”, conta. “Mas é muito melhor do que no Brasil”, compara. “Mesmo porque, aqui os pais ajudam nesse sentido”, diz Naima.

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