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Entrevista: militar russo que desertou e denunciou falhas no Exército pede asilo na França

Com a ajuda de uma ONG russa, Pavel Filatiev, ex-paraquedista do 56º Regimento de Assalto Aerotransportado russo baseado na Crimeia, conseguiu escapar da Rússia, onde poderia ser condenado a 15 anos de prisão depois de denunciar o estado lamentável do Exército russo e a operação militar que seu país realiza na Ucrânia. Graças a uma delicada operação montada por uma ONG, o soldado chegou a Paris no domingo (28) e agora pede asilo político na França.

Pavel Filatiev chegou a Paris no domingo (28) e recebeu a equipe da RFI no aeroporto Charles de Gaulle.
Pavel Filatiev chegou a Paris no domingo (28) e recebeu a equipe da RFI no aeroporto Charles de Gaulle. © RFI
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Os repórteres Anastasia Becchio e Denis Strelkov (da redação russa da RFI), encontraram o militar no aeroporto Charles de Gaulle de Paris, próximo da área de espera  dos requerentes de asilo. Na entrevista, Filatiev contou o quanto se sentiu “enganado" por Moscou, ao ser obrigado a combater com equipamentos defasados e em péssimo estado, em uma guerra cujas razões foram distorcidas.

"Muitos soldados ainda hoje estão prontos para morrer pelo meu país, porque não sabem quais são as causas desta guerra. Eles vêem que há muitas mentiras, que há muitas baixas entre a população civil, mas não entendem que a Otan ou outros não estão nos ameaçando de forma alguma”, disse o militar. "Esta é toda a mentira e o horror desta guerra.”

RFI: Como você se sente hoje ?

Pavel Filatiev: Sinto uma incerteza. Não sei como me sinto e o que devo fazer, já que há duas semanas eu me acostumei com a ideia de que ia apodrecer em uma prisão russa, ou que seria morto depois do que eu disse sobre o que está acontecendo na Ucrânia e no Exército russo. Eu havia dito a mim mesmo que, na melhor das hipóteses, eu não seria libertado da prisão até uma idade avançada.

Depois de publicar sua história na internet e dar algumas entrevistas na Rússia, você acabou decidindo deixar seu país. Você foi retirado com a ajuda da ONG no exílio na França "Gulagu.net". Foi uma longa jornada, cinco fronteiras cruzadas, com muitos obstáculos, principalmente durante sua última escala antes de Paris.

Sim, eu estive em Túnis e lá fui preso pelas Forças Especiais. Homens vieram no meio da noite, me algemaram. Eles não tinham mandado de prisão. Eles me detiveram por 24 horas e me acusaram de terrorismo, extremismo, ligações com mercenários. Depois, homens das Forças Especiais chegaram e me disseram que eu tinha que deixar o país. Foi quando tomei a decisão final de ir a Paris para buscar asilo.

Quando você chegou ao aeroporto Charles de Gaulle, você gravou um vídeo no qual você aparecia rasgando seu passaporte russo, seu cartão militar e outros documentos oficiais. Qual era o objetivo desse gesto?

É um gesto que fiz sob a influência da emoção. Você deve saber que no início, eu não tinha planejado vir aqui na França. Fui tomado pelas emoções: tenho 34 anos e, por toda a minha vida, eu quis ser útil ao meu país. Mas hoje entendo que vivi esses 34 anos, mas na verdade, ninguém precisa de mim. No meu país, não há liberdade de expressão. No meu país, os direitos dos militares e de todos os cidadãos, em geral, são inexistentes.

Quando me encontrei no aeroporto Charles de Gaulle, senti ressentimento, porque durante toda a minha vida quis ser útil ao meu país. Eu estava pronto para morrer por meu país, mas percebi que meu país não se importava comigo, nem com ninguém que morreu. Para mim, é triste e frustrante entender que, no meu país, o preço da vida humana está próximo de zero. Por isso rasguei meus documentos: meu certificado de veterano graças ao qual eu recebia uma pensão na Rússia, minha cartilha militar, meu passaporte. Rasguei tudo e fiz com que desaparecessem no banheiro. Com este gesto, também quis mostrar aos meus compatriotas que o governo russo e o povo russo não eram a mesma coisa.

Você lutou no sul da Ucrânia, em Kherson e na região de Mikolaiev, no 56º regimento das tropas aerotransportadas baseadas na Crimeia. Depois de sofrer uma lesão no olho, você desertou e publicou sua história. Você denuncia o despreparo das tropas, táticas de outra época e uma falta gritante de equipamentos. Por que fez isso?

O problema decorre do fato de que a corrupção no Exército é generalizada, assim como em outras estruturas. É por isso que, seja munição, material ou equipamento, sempre há falhas. Ou seja, no papel está tudo bem, os relatórios indicam que está tudo em ordem, mas na realidade há muitas coisas que não estão funcionando e o resultado é que os militares não estão prontos para cumprir as tarefas que lhes são atribuídas pelo governo.

Eu diria que pelo menos um veículo militar em 100 está totalmente defeituoso: ou é a transmissão que não funciona, ou não tem mais janelas, ou não tem mais freios. Mas nos relatórios, este material está em boas condições. Acontece até de um material completamente diferente estar indicado no papel, mas na realidade, é bem diferente.

Que problemas você enfrentou dentro do seu batalhão?

Nosso batalhão foi enviado para a guerra em pequenos UAZs, veículos militares que foram projetados há meio século. E foi nessas máquinas que minha unidade de assalto foi enviada para a batalha. Em alguns veículos, as portas tinham grandes fendas; em outros – e eram muitos –, não havia mais ar quente, em pleno inverno.

Outros ainda estavam sem freios, sem luzes. Metade desses veículos deveria estar fora de serviço. O que você acha que dá para ganhar com veículos que foram feitos há 50 anos? É claro que isso não corresponde, de forma alguma, aos padrões atuais.

Este estado de degradação que você descreve teve, na sua opinião, impacto no desenrolar da guerra?

Tem uma verdade estabelecida para os militares: se um soldado está com fome, com frio, será ainda mais difícil para ele alcançar seus objetivos. O fato de termos munição, coletes à prova de balas ou até kits de primeiros socorros de pior qualidade que os ucranianos, obviamente, teve um impacto nos objetivos que foram estabelecidos pelo Exército russo.

O que você sabe sobre o estado de espírito dentro do Exército? Existem muitas pessoas que pensam como você, que compartilham seu ponto de vista?

Há muitos soldados que são como eu. Quando muitos soldados viram, no início da guerra, que estávamos sendo enganados, que não era uma guerra justa, eles se recusaram a participar. Mas, ao mesmo tempo, muitos soldados ainda hoje estão prontos para morrer pelo meu país, porque não sabem quais são as causas desta guerra.

Eles vêem que há muitas mentiras, que há muitas baixas entre a população civil, mas não entendem que a Otan ou outros não estão nos ameaçando de forma alguma. Muitos continuam a acreditar nessa narrativa e permanecem na linha de frente. Esta é toda a mentira e o horror desta guerra.

Você estava na frente sul quando o horror do massacre de Bucha, na periferia de Kiev, foi documentado. Você testemunhou algum abuso?

No meu regimento, havia pessoas muito diversas: há bandidos e mocinhos, espertos e estúpidos. Mas sei que nenhum deles executou prisioneiros. Todos nos conhecemos bem, conversamos e sei que ninguém cometeu tais atos. Porém, sim, eu disse que no meu regimento havia pessoas que roubavam coisas, laptops, telefones. Mas nada mais.

Sobre o que aconteceu no front norte, ouvi dizer que a comunidade internacional obteve muitas provas de que nossos soldados, meus colegas, cometeram um número impressionante de crimes. Não quero acreditar, mas entendo que se há tantas evidências, é que tais atos ocorreram. E considero que o governo russo desonrou seu próprio povo e o Exército russo, recusando-se a aceitar essas questões e ignorando todas essas acusações.

Você acha que o livro que você publicou na internet em russo poderá estimular outros soldados a seguir o seu exemplo? A baixar as armas?

Mesmo que 100 pessoas decidissem não ir à guerra depois de ler minha história, eu já consideraria isso uma vitória pessoal. Pensarei, então, que mantive minha promessa diante de Deus, que fiz o que estava em meu alcance.

Neste momento, vou fazer tudo o que eu puder para tentar parar esta guerra, para garantir que os meus compatriotas não participem mais nesta guerra, e é por isso que vou continuar, na medida do que eu posso, a trazer conhecimento sobre a verdade.

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