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Merkel se prepara para deixar o poder após 16 anos à frente da Alemanha

Símbolo da longevidade política, Angela Merkel deixará o cargo de chanceler após as eleições legislativas do próximo 26 de setembro. A líder encerrará um capítulo importante da história da Alemanha e da União Europeia (UE), deixando um legado invejável a chefes de Estado e governo de todo o mundo.

Aos 67 anos, a chanceler alemã Angela Merkel é considerada a governante mais poderosa do mundo.
Aos 67 anos, a chanceler alemã Angela Merkel é considerada a governante mais poderosa do mundo. AP - Franc Zhurda
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Daniella Franco, da redação da RFI Brasil

Após quatro mandatos de chanceler e 16 anos à frente do governo alemão, “Mutti” (mãezinha), como Merkel é carinhosamente chamada na Alemanha, deixará a função de chanceler no ápice de sua popularidade, eleita como a personalidade política preferida dos alemães nos últimos seis anos. Aos 67 anos, ela é considerada como a mulher mais poderosa do mundo, pilotando como poucos o país mais populoso da Europa –  mais de 83 milhões de habitantes – um dos principais pilares do Velho Continente.

“No geral, a imagem que fica de Merkel é de alguém que fez seu trabalho. Ela soube gerenciar seu país e segurou a Europa durante várias crises. Ela vai deixar a imagem de estabilidade na Alemanha, onde ela realizou algumas reformas importantes, como a saída do nuclear e o acolhimento dos migrantes. Em nível europeu, ela aceitou a mutualização da dívida em 2020”, aponta à RFI o pesquisador Paul Maurice, especialista nas relações franco-alemãs do Instituto Francês das Relações Internationais (Ifri).

A chegada ao ápice de uma carreira brilhante não veio por acaso e é fruto de uma vida inteira dedicada à política. Merkel nasceu em 17 de julho de 1954 em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, mas sua família se mudou para o leste do país, onde, desde jovem, a chanceler integrou movimentos comunistas.

Em 1978, começou a estudar física na Universidade de Leipzig, obtendo um doutorado em 1986 e trabalhando até 1990 no Instituto de Física e Química da Academia de Ciências da Alemanha Oriental. Integrando o movimento Demokratischer Aufbruch, oposto ao comunismo, registrou uma fulgurante ascensão política. Pouco depois da queda do Muro de Berlim, foi nomeada como porta-voz do governo do leste.

Após a reunificação, em outubro de 1990, passou a integrar a União Cristã Democrática (CDU) e foi eleita para o Parlamento do país. Célebre pupila do chanceler Helmut Kohl, liderou os ministérios das Mulheres e da Juventude (1991-1994) e do Meio Ambiente e da Segurança Nuclear (1994-1998).

A vasta experiência na vida política também lhe dotou de certa frieza e pragmatismo. Em uma atitude inesperada, não poupou críticas a seu mentor na época em que Kohl foi acusado de corrupção. Em 1999, em uma coluna no jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung, Merkel denunciou as práticas fraudulentas do então chanceler e pediu abertamente sua saída.

Kohl nunca perdoou sua protegida, que carinhosamente chamava de “menina”, considerando as críticas públicas como uma traição. Em um de seus momentos de fúria, ele chegou a declarar que, antes de entrar em seu governo, Merkel “não sabia nem comer com garfo e faca”.

Para a CDU - legenda tradicionalmente masculina, conservadora e ocidental – a tribuna assinada por Merkel foi uma revolução. No início, a jovem vinda do leste, filha de um pastor protestante, sem filhos, que apenas recentemente havia formalizado sua união estável com o companheiro (o discreto químico Joachim Sauer), foi vista sob ceticismo. Mas, se no começo era considerada uma solução transitória, Merkel soube tomar as rédeas e, com a imagem de Kohl abalada, tornou-se a primeira mulher a pilotar o partido.

Apenas sete anos depois, em novembro de 2005, sucedeu o social-democrata Gerhard Schröder no posto de chanceler. Após outras três eleições legislativas consecutivas (2009, 2013 e 2017), permaneceu no poder e se consolidou como uma das grandes líderes do século XXI.

Resumo positivo, mas não indefectível

Segundo o pesquisador do Ifri, o desempenho da chanceler poderia ter sido melhor nesses 16 anos de governo. “Em nível europeu, ela fez muitas coisas, mas nunca esteve na origem dessas iniciativas para grandes reformas. Ou seja, ela soube gerenciar as crises, mas não soube antecipá-las. O mesmo ocorreu na Alemanha, onde ela reagiu a fatos para os quais não se preparou, falhando em prever uma política ambiental voltada para o futuro, por exemplo, ou uma evolução de uma indústria menos ligada ao carvão e menos dependente da China”, enumera.

Afinal, se a decisão de abandonar as usinas nucleares foi vista como visionária na época em que foi anunciada, em 2011, a indústria do carvão foi obrigada a responder à alta demanda de eletricidade com a transição prevista até 2030, na espera que a Alemanha possa produzir uma quantidade significativa de energia limpa para abastecer todo o país.

“Esses últimos anos foram marcados por um governo que não avançou em termos de política climática, uma chanceler que segurou as rédeas no lugar de acelerar. O mesmo ocorre no plano nacional. É verdade que a Alemanha apostou em uma dupla transição energética com a saída do nuclear e do carvão. As energias renováveis pesam mais de 40% no mix elétrico, o que é bom, mas é preciso ir além disso. Já a decisão de deixar o carvão até 2038 é claramente ultrapassada”, avalia Audrey Mathieu, da ONG GermanWatch, em entrevista à RFI.

Por outro lado, especialistas concordam que entre os principais acertos da chanceler está o acolhimento dos migrantes, durante a crise de 2015. “Enquanto muitos Estados Europeus estavam reticentes, Merkel apostou em uma política humanista ao receber pessoas que estavam fugindo de seus países, e isso mudou também a imagem da Alemanha”, diz Maurice.

Cerca de 800 mil migrantes puderam ser acolhidos, uma política classificada como “um sucesso” por Hélène Miard-Delacroix, professora de História e Civilização da Alemanha contemporânea na Sorbonne. “De um lado, a decisão pode ser justificada pela demografia do país e o fato que, sem imigração, a população vai declinar. Mas também diz respeito à convicção pessoal de Merkel, filha de um pastor, vinda da Alemanha Oriental, uma ditadura a fronteiras fechadas. E também havia um cálculo político porque ela se apropriou das questões dos Verdes e da esquerda”, aponta, em entrevista à Franceinfo.

Reformas sociais

Outros pontos aclamados da era Merkel são as reformas sociais, como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em junho de 2017, embora, “ela não tenha votado a favor deste projeto”, lembra Maurice. Uma maneira de avançar em direção ao futuro, mas sem se implicar diretamente, analisa Agathe Bernier-Monod, especialista da Alemanha contemporânea e professora na Universidade do Havre, à Franceinfo.

Essas atitudes “paradoxais”, segundo Maurice, foram utilizadas pela chanceler em outras ocasiões. Em 2012, Merkel recorreu à mesma estratégia para adotar o projeto de salário mínimo defendido pelo Partido Social Democrata (SPD), sobre o qual a própria chanceler havia se oposto durante a campanha eleitoral.

Outra conquista pela qual a chanceler será lembrada é a aprovação do plano de retomada econômica, em julho de 2020, devido à pandemia de Covid-19. Após ser criticada pelo rigor durante a crise do euro, em 2011, que penalizou a Irlanda, a Espanha e a Itália, mas sobretudo a Grécia, Merkel soube se mostrar solidária.

Especialistas apontam que a aprovação de um plano de € 750 bilhões, permitindo criar uma dívida europeia comum, foi uma clara mudança de paradigma da chanceler. Para Maurice, esse, aliás, será “um importante elegado” do último mandato da líder alemã.

“Merkel disse na época que isso seria algo pontual e que não se repetiria. Mas o fato de a Alemanha – um país a favor do rigor orçamentário – aceitar esse plano é a clara abertura de uma porta. Talvez isso vá permitir uma discussão uma mutualização da dívida europeia a longo termo”, prevê.

Desafios para o próximo governo

A pouco menos de uma semana das eleições legislativas, tudo aponta que o candidato de Merkel, o impopular Armin Laschet, será batido pelo social-democrata Olaf Scholz. Além da dura tarefa de substituir uma governante que virou o pilar da Alemanha, o próximo líder terá também diversos desafios.

“É difícil de chegar depois de alguém que virou o símbolo de um país, que permaneceu tanto tempo no poder, que foi reeleita várias vezes, que tem uma representação forte internacionalmente. A política alemã passará, sem dúvidas, por mudanças profundas”, diz Maurice.

O especialista diz que em meio a tantas incertezas, é possível apostar em transformações políticas importantes no futuro. “Quem quer que seja o chanceler, haverá mudanças porque as coalizões serão diferentes das que temos hoje. Além disso, o contexto é diferente e os desafios serão outros.”

Para Maurice, quem assumir a liderança da Alemanha terá pela frente questões como as mudanças climáticas, digitais e sobretudo industriais. “Não será possível permanecer em uma política de exportação massiva dependente dos chineses. Será preciso se adaptar porque a China também está produzindo suas próprias tecnologias”, o que pode ter consequências importantes para a Alemanha, conclui o pesquisador do Ifri.

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