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Censura/Europa do Leste

Artistas do Leste Europeu contam como são censurados sob regime populista

Árpád Schilling, um dos principais diretores de teatro da Hungria, foi considerado como “ameaça à segurança nacional” pelo polêmico primeiro-ministro populista Viktor Orbán. O diretor polonês Krystian Lupa, cujo espetáculo “Processo”, inspirado em Kafka e na situação política de seu país, foi um dos principais destaques do prestigioso Festival de Outono de Paris, decidiu deixar a direção de um dos principais teatros da Polônia, após perceber a "manipulação do Ministério da Cultura". Ameaçados, eles se recusam a ficar calados. A RFI conversou com os dois artistas, símbolos de uma geração que cresceu sob as ruínas do comunismo e que produz sob a égide do populismo.

O diretor húngaro Árpád Schilling, durante o debate "Os Indesejáveis, os últimos muros contra a Ditadura", realizado no Théatre de L'Odéon, em Paris, em 26 de novembro de 2018.
O diretor húngaro Árpád Schilling, durante o debate "Os Indesejáveis, os últimos muros contra a Ditadura", realizado no Théatre de L'Odéon, em Paris, em 26 de novembro de 2018. RFI/Márcia Bechara
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A Hungria vive, depois que o premiê Viktor Orbán foi reeleito pela terceira vez como chefe do governo, uma intensificação da “guerra cultural” que visa, em suas palavras, uma “arte moral”. As cercas de arame farpado para impedir a entrada de refugiados, que Orban mandou construir em 2015, nas fronteiras com a Sérvia e a Croácia, se estendem agora à criação artística. Nada parece escapar aos olhos (e às rédeas) deste líder, considerado autoritário e xenófobo, que foi alvo de uma sanção inédita do Parlamento Europeu, em setembro de 2018, por “risco de grave violação dos valores e direitos fundamentais” em seu país.

“A mudança está em curso, e se aprofunda cada vez mais”, alerta Árpád Schilling, 44, um dos artistas censurados pelo regime de Orbán. “O que vejo é que a censura se torna cada vez mais forte na Hungria, com as pessoas tentando entender o que o governo espera deles. Elas tentam se adaptar a isso. Considero que estamos cada vez mais próximos da censura real”, conta o diretor, destaque principal do Festival “Un weekend à L’Est” (“Um fim-de-semana no Leste”, em português), que esteve em cartaz em Paris no fim de novembro, com dezenas de artistas desta parte do velho continente.

Segundo Schilling, “existe uma guerra cultural”. “O governo de extrema direita tenta fazer pressão, determinar o que gostaria de ver nos palcos. Fica cada vez mais explícito o tipo de política cultural nacionalista que eles querem implementar”, afirma. Para o diretor, trata-se de uma visão extremamente conservadora e acrítica, com foco nos grandes clássicos para escapar do debate das questões contemporâneas. “Não tenho nada contra os clássicos. Deus me livre de não poder mais montar um Tchecov. Mas não podemos fugir deste debate sobre questões concretas que nos afligem, sobre política, sobre teatro”, completa.

Falta de solidariedade entre intelectuais

O artista conta que deixou a Hungria por causa da falta de solidariedade e o oportunismo de muitos intelectuais. “Estamos próximos de uma ditadura. Neste caso, devemos lutar contra ela. Eu comecei a me sentir muito sozinho e me disse que talvez fosse melhor deixar o país. Talvez não para sempre. Mas um pouco, para ver o que está acontecendo na Europa. Quando você está no meio do furacão, não dá para ver direito o que se passa, você não tem a distância necessária para compreender o que está acontecendo”, diz.

“Não deixei a Hungria por causa de Orbán. Deixei meu país por causa dos intelectuais, dos artistas de teatro húngaros, e dos diretores dos teatros nacionais, que se encontram totalmente adaptados a esse sistema. Dentro dos muros dos teatros, eles se expressam livremente sobre a situação. Mas em público ficam de boca fechada. Eu vi que precisava de um tempo, porque estava ficando cada vez mais exaltado, bravo. Tenho duas crianças pequenas, não queria levar isso para dentro de casa todos os dias”, conta Schilling.

“Não estamos numa situação como a Turquia, como a Rússia. Então, se não concordamos com o sistema, qual o problema? Por que não gritamos mais alto, por que não somos mais agressivos?”, questiona o diretor. “É claro que existem pessoas em perigo, que podem perder o emprego, o maior perigo continua sendo perder o emprego, ou subvenções estatais para continuar trabalhando, se você é artista ou jornalista. Ontem, por exemplo, um jornalista da mídia estatal perdeu seu emprego porque cometeu um erro, depois de oito anos no cargo. Ele fez uma pergunta, fora do roteiro, a parlamentares húngaros que apoiam Orbán sobre o escândalo causado pelo acolhimento que a Hungria deu ao ex-primeiro-ministro da Macedônia”, conta.

Schilling conta que muitos artistas, à frente de instituições culturais na Hungria, preferem evitar a confrontação direta com o governo, não apenas por medo de perderem seus postos, mas porque colocariam também em perigo o emprego de seus funcionários e colegas. “É uma espiral de medo. Um medo real, um perigo real. Mas você também pode começar a sentir esse medo sem nenhuma indicação real. A paranoia começa aí”, avalia.

“Uma lição que aprendemos com a Segunda Guerra Mundial é como os intelectuais pouco a pouco, com algumas poucas explicações, começam a se convencer e se posicionam cada vez mais próximos do poder”, lembra Schilling. “É interessante, e aconteceu no período comunista na Hungria. Se no começo se luta contra o regime, pouco a pouco percebemos que já estávamos do outro lado. [No caso de Orbán] não existiu uma luta real”, afirma.

“O processo aconteceu lentamente. Se você perde a hora certa de se posicionar, de gritar, de se manifestar, de bloquear o sistema, você perde a guerra. Não era um grande problema no começo. Poderíamos ter parado Orbán, mas não dissemos não no momento certo, logo no início, quando ele mudou a lei sobre artes do espetáculo, por volta de 2009”, lembra o artista húngaro.

Soros, Gênero e Marx: os inimigos jurados de Viktor Orbán

A última investida do premiê atingiu em cheio um dos principais centros de produção de saber do continente: a Universidade da Europa Central (CEU). Fundada pelo mecenas húngaro-americano George Soros, a instituição anunciou na segunda-feira (3) que transferirá suas atividades de Budapeste, na Hungria, para Viena, capital da Áustria. A transferência, prevista para setembro, afetará todos os alunos de cursos internacionais da reputada instituição, que já formou mais de 10.000 estudantes estrangeiros na capital húngara.

A decisão foi tomada após polêmica disputa com Orbán, que, numa jogada política, utilizou-se de uma lei de 2017, que passou a obrigar todas as universidades estrangeiras implantadas na Hungria a terem um campus em seu país de origem, o que não era o caso da CEU.

O diretor Árpád Schilling relata que, numa conferência recente com pesquisadores em História e Cultura, em Budapeste, “havia um cientista que queria abordar questões sobre o gênero e outro que falaria sobre marxismo e os organizadores do evento pediram a estes dois especialistas que não fizessem seus discursos. Tem duas coisas que esse governo não gosta: temáticas de gênero e Marx. Esse governo quer retirar completamente Marx da história húngara”, conta.

“Apenas um cientista foi solidário a esses pesquisadores, todos os outros ficaram calados. Então a censura passa pela autocensura, abrindo espaço cada vez mais para a real censura”, comenta.

O processo kafkaniano de Krystian Lupa na Polônia: do palco para a vida real

Krystian Lupa, 75, é atualmente um dos diretores de teatro mais presentes na cena francesa contemporânea. Em entrevista à RFI, diretamente de Cracóvia, onde apresentava seu “Processo”, inspirado no livro homônimo do escritor tcheco Franz Kafka, ele contou porque decidiu abandonar o Teatro Polski, um dos maiores do país, considerado a “Comédie-Française” de Varsóvia.

“Eu não fui demitido. Após a mudança na direção do Teatro Polski, uma mudança que ocorreu após um concurso em grande parte manipulado pelo Ministério da Cultura polonês (e eu vi o quão longe esta manipulação pôde ir, porque eu era um membro do júri), suspendi em protesto os ensaios do ‘Processo’ e saí do Teatro Polski”, conta. Segundo Lupa, alguns dos atores envolvidos neste trabalho também partiram. “Muitos outros foram demitidos pelo novo diretor, seja porque participaram dos protestos ou porque criticaram o que estava acontecendo no Polski”, afirma.

“Foi essencial para mim suspender este trabalho”, afirma Lupa. “Se não, eu legitimaria o resultado ilegítimo da competição e as medidas colocadas em prática pela nova administração”, diz. “No espaço de dois anos, de uma instituição reconhecida pela crítica e pelo público, o Teatro Polski, tornou-se uma cena de segunda categoria, insignificante artisticamente”, lamenta.

O diretor conta ainda que muitos dos atores envolvidos no projeto Kafka passaram por processos jurídicos com o Polski. “Eram julgamentos que, em seus argumentos e desdobramentos, pareciam estranhamente com aqueles descritos por Kafka”, diz, fazendo referência ao processo, surreal e incompreensível, descrito pelo escritor tcheco em um de seus livros mais célebres.

“Artistas foram expulsos de seus lugares, em suas vidas particulares e artísticas, e se depararam com algo irracional e cínico. Um ano se passou. Alguns dos principais teatros de Varsóvia, onde, felizmente, a festa do PIS [Partido Direito e Justiça, populista e eurocético, considerado de extrema direita] ainda não reina, e o Festival de Outono, em Paris, me ofereceram um espaço para concluir o projeto Kafka”, conta Lupa.

O diretor conta que, junto aos atores e à equipe técnica, teve que “recomeçar o trabalho desde o início, incluindo a amargura e as experiências do Teatro Polski e este projeto, iniciado há um ano”. “Isso aconteceu dentro do espírito de 'Processo' de Kafka, essa tentativa de sujeitar a cultura à base da ideologia nacional-católica usada pela atual direção. Não se trata apenas de subjugar os artistas. Nós testemunhamos ações de indivíduos cheios de complexos, cujo único motivo é o ódio e a vingança. É por isso que tudo que eles tocam se transforma em um ato de destruição”, afirma Lupa.

A resistência dos artistas na Polônia

Para Krystian Lupa, no entanto, “o que é encorajador é que poucos artistas se permitiram ser prostituídos ou intimidados pelo poder atual”. “Estamos testemunhando uma situação sem precedentes, onde o poder não tem subordinados para implementar suas ideias e ambições culturais, ideológicas ou de propaganda”, analisa.

Segundo o diretor, quando o Ministério da Cultura do país, seguindo o exemplo do Teatro Polski, anunciou a nova administração do Teatro Stary na Cracóvia [outra cena de primeira categoria do contexto teatral polonês], a associação de diretores surgiu para protestar contra “essa ação cínica e destrutiva”. “Eles boicotam esse novo teatro do regime e sua direção. A cena 'underground' está ganhando força. Pouco a pouco, os líderes do regime se tornam conscientes do vazio que foi criado em torno deles”, diz.

Perguntado sobre possíveis comparações entre a Polônia e o Brasil de 2018, Lupa diz apenas que “se a Polônia não estivesse no meio da União Europeia, o que força nosso regime a preservar os critérios democráticos, estaríamos como vocês ou quase”. “É exatamente - no que diz respeito à mentalidade dessas pessoas - a mesma mistura de complexos, sede de poder, ressentimento e ignorância que o Brasil”, conclui o diretor.

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