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"Querer que atleta não se manifeste politicamente é condená-lo a ser cidadão de 2ª classe", diz Juca Kfouri

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Para o jornalista e comentarista esportivo Juca Kfouri, a politização do esporte é um “falso debate”. “Política e esporte sempre estiveram juntos”, argumenta ele, que já foi diretor de publicações como Placar e Playboy. Juca falou à RFI sobre a polêmica envolvendo a atleta Carol Solberg [filha da mítica jogadora Isabel Salgado], duramente criticada pela Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) após criticar o presidente Jair Bolsonaro. “A mesma CBV que saudou a ‘liberdade de expressão’ quando atletas do vôlei masculino fizeram campanha para Bolsonaro nas redes”, lembra Kfouri.

O jornalista e comentarista esportivo Juca Kfouri.
O jornalista e comentarista esportivo Juca Kfouri. © Reprodução Facebook
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* Para ver a entrevista na íntegra, clique na foto acima. 

RFI:O envolvimento de atletas não é algo novo. Um exemplo icônico disso são os atletas negros norte-americanos que erguem o punho imitando o gesto dos Panteras Negras no estádio olímpico da Cidade do México, em 1968. Gostaria que você falasse um pouco sobre o esporte como arena de discussão de assuntos políticos.

Juca Kfouri: Essa é ou deveria ser uma falsa discussão, como se alguma coisa pudesse ser separada da política, ou como se o ser humano não fosse político por natureza. Até a maneira como você toma café da manhã é política: é você que faz seu café da manhã? É você que serve? Ou é alguém que vive com você? Ou é uma empregada ou empregado seu? Antes mesmo do gesto do [ Tommie] Smith e do [John] Carlos na Olimpíada do México de 1968, nós tivemos o Muhammed Ali, que mudou até o nome, que era Cassius Clay. Convocado para ir para a guerra do Vietnã, recusou-se, dizendo que não tinha nada a ver com aquele guerra ilegítima nos cafundós da Ásia. Perdeu o cinturão de campeão mundial dos pesos pesados, foi recuperar anos depois. Aqui no Brasil, tivemos outras demonstrações, como a Democracia Corintiana, de Sócrates, Casagrande e Vladimir, a faixa pela Anistia aberta no Morumbi. Você querer que o atleta não participe da vida política é condená-lo a ser um cidadão de segunda classe. O que nós estamos vendo, muito motivado pelos atletas do basquete nos Estados Unidos contra a violência policial, é isso se espalhar pelo mundo. O que nós vimos aqui no Brasil esta semana [o episódio com a jogadora Carol Solberg] dá a medida de como isso se espraiou e como isso enfrenta uma reação dos poderosos. Porque é uma mulher falando contra Bolsonaro e ah... isso não pode!

Você cita na sua coluna uma possível ambiguidade da Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) que considerou uma “liberdade de expressão” quando os atletas Wallace e Mauricio de Souza fizeram campanha para Jair Bolsonaro nas quadras. Dois pesos, duas medidas?

É isto, dois pesos e duas medidas da elite branca brasileira, que quer subjugar a maioria do povo brasileiro há mais de 500 anos. (...) Não há nada do que a nossa elite branca tenha mais medo do que da cidadania. (...) Isso vem desde o impeachment da presidenta (sic) Dilma Rousseff, quando essa mesma elite começou a reclamar que os aeroportos pareciam rodoviárias. O Brasil foi o último país do mundo a acabar com a escravidão, e o fez de maneira bem cafajeste. Quis “branquear” a raça brasileira, trazendo migrantes da Europa, do Japão. Este é o Brasil que se orgulha de não ser racista e mata oito jovens negros por dia pela letalidade policial. Você querer que um atleta consciente se cale diante disso, que ele se limite a disputar as suas competições, é subjuga-lo à condição de segunda classe.

O gesto Black Power de John Carlos (direita) e Tommie Smith. Peter Norman (esquerda) está vestindo um distintivo do Projeto Olímpico para Direitos Humanos em solidariedade a eles.
O gesto Black Power de John Carlos (direita) e Tommie Smith. Peter Norman (esquerda) está vestindo um distintivo do Projeto Olímpico para Direitos Humanos em solidariedade a eles. © Wikipédia

Como está neste momento a reação no Brasil à fala da jogadora Carol Solberg?

Está menos reativa por parte dos atletas do que gostaríamos. Acabei de publicar uma nota provocando os atletas a tomar uma atitude solidária. Na intelectualidade e em algumas reações da rede, a Carol Solberg vem tendo muita solidariedade. Até agora, a Comissão de Atletas do Vôlei de Praia, que tem como ex-presidente um ex-campeão olímpico, Emanuel Rego, censurou a Carol. E veja a ironia: esse rapaz foi secretário de Esportes do governo Bolsonaro e foi demitido por ser casado com a senadora Leila, ex-atleta do vôlei, que andou fazendo críticas à política do governo.  E aí, o demitiram, ou seja, ele que foi vítima de censura, agora, como é candidato à vice-presidência no Comitê Olímpico Brasileiro, adota a função do censor. O problema é estrutural.

A questão da raça parece ser importante neste “levante” dos atletas brasileiros, como no caso do ginasta Ângelo Assumpção, que denunciou o racismo na ginástica olímpica.

O caso dele é um caso típico. Ele sofria bullying já há algum tempo no Clube Pinheiros, da elite paulistana, e acabou demitido. Só aí ele veio a público. Porque se viesse antes, seria demitido antes. Eu não exijo heroísmo com o pescoço alheio. Eu sei das minhas circunstâncias, não sei das dos atletas que se submetem. Mas o que aconteceu com ele é o mais comum, infelizmente, entre os atletas negros. Não é diferente das mulheres que hoje tem a coragem de denunciar assédio. Quantas guardaram por 20, 30 anos, por vergonha, o fato de terem sido assediadas? Felizmente estamos vivendo no mundo um momento onde essas coisas estão sendo destampadas. É um processo. De todos os jogadores de futebol brasileiros um dia eleitos o número 1 do mundo, apenas um é branco, o Kaká. Sem nenhuma crítica a ele, o menos genial. Antes dele, Didi, Pelé, Garrincha, Romário, Ronaldo Fenômeno, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, todos negros. Marta, seis vezes eleita a melhor jogadora do mundo, é negra. (...) Já no panorama dos treinadores brasileiros, é raro ter um negro na primeira divisão. Jamais um treinador negro brasileiro foi técnico da Seleção Brasileira numa Copa do Mundo. O único técnico brasileiro negro que participou de uma Copa do Mundo foi o Didi, à frente da seleção do Peru, em 1970. Quantos presidentes de clube de futebol no Brasil são negros, na primeira divisão? Nenhum. Da segunda divisão: um, eleito vice-presidente que assumiu a presidência do clube quando o titular renunciou. Isso num país que possui 55% de negros.

campeonato mundial de boxe de pesos pesados entre Muhammad Ali (Cassius Clay) (no chão) e Joe Fazier no final da qual Frazier manteve seu título de campeão mundial de boxe de pesos pesados.
campeonato mundial de boxe de pesos pesados entre Muhammad Ali (Cassius Clay) (no chão) e Joe Fazier no final da qual Frazier manteve seu título de campeão mundial de boxe de pesos pesados. AFP - -

Qual a sua aposta para o desenrolar com a polêmica sobre o insulto racista que Neymar declarou ter recebido do zagueiro espanhol Álvaro Gonzalez, do Olympique de Marselha?

No Brasil, especialistas em leitura labial contratados pela TV Globo confirmam que o Neymar foi chamado de “Mono” (“Macaco”, em espanhol). Não se trata de uma leitura que poderia ser considerada “brasileira”. Não estamos mais nesta fase de “puxar sardinha para a nossa brasa”, num caso importante como esse. Pesam contra o Neymar uma série de aspectos: as confusões todas nas quais ele já se meteu; o fato de um dia ele ter dito que não era negro; o próprio comportamento dele durante a partida; chamar o jogador espanhol de “maricón”, o que também é uma atitude deplorável sob todos os aspectos. Mas o que me chamou mais atenção na primeira nota do PSG foi – “o atleta diz que”. Se fosse o Leonel Messi envolvido, o Barcelona diria “Messi que FOI ofendido racialmente”. Não se coloca em dúvida a palavra do atleta. Infelizmente o histórico do Neymar justifica esse cuidado. As imagens através das quais os especialistas em leitura labial chegaram à conclusão em que há o xingamento de “Mono” estão à disposição das autoridades francesas. Existem condições tecnológicas e especialistas que possam dar um veredito. Está demorando muito, e quando demora, a gente sabe que a tendência, principalmente no mundo do futebol, é abafar.

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