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TEATRO

Inspirado em texto de Tchekhov, peça de diretor dissidente russo faz história no Festival de Avignon

O diretor russo Kirill Serebrennikov fez jus à sua reputação de ser um dos maiores artistas de sua geração no palco mais nobre do Palácio dos Papas nesta quinta-feira (7), durante o Festival de Avignon. Explorando os limites da linguagem teatral até as fronteiras da ópera, numa evocação atualizada do conceito alemão de “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk), o encenador explorou a potência de seu dispositivo cênico para uma novela pouco conhecida do conterrâneo Anton Tchekhov, “O Monge Negro”.

Kirill Serebrennikov e sua trupe durante aplausos após a estreia de "O Monge Negro" na Cour d'Honneur do Palácio dos Papas no Festival de Avignon de 2022.
Kirill Serebrennikov e sua trupe durante aplausos após a estreia de "O Monge Negro" na Cour d'Honneur do Palácio dos Papas no Festival de Avignon de 2022. © Siegfried Forster / RFI
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Entre Wagner e Brecht. Entre a loucura e a sanidade. Entre “locais” e “estrangeiros”. Os deuses do teatro marcaram presença na noite desta quinta-feira (7) na estreia de “O Monge Negro” (“Le moine noir”, em francês), do diretor russo Kirill Serebrennikov, verdadeiro deus ex-machina por trás desta encenação da história alucinante de um jovem e arrogante intelectual aristocrata que perde a razão ao vislumbrar um “monge negro”.  

Tudo isso sob o céu estrelado que reinou sobre a “Cidade dos Papas”, onde os cerca de dois mil espectadores, incluindo Rima Abdul-Malak, a nova ministra francesa da Cultura, puderam experimentar um espetáculo de extraordinária coragem e potência, durante as cerca de três horas de apresentação.

Ninguém piscou o olho até o quadro final, quando o diretor russo – fortemente aplaudido no festival de Cannes quando lançou um grito anti-guerra na plateia da croisette -, projetou nos muros seculares do Palácio dos Papas a frase “Stop War”, em inglês, “pare a guerra”. Foi nesta cidadela medieval que ele provavelmente entrou para a história do “chão sagrado” do Festival de Avignon, criado por uma verdadeira referência do teatro e do cinema francês, o ator, autor e diretor Jean Vilar, em 1947.

Com uma partitura gestual muito precisa e uma trupe afinada de cerca de 20 artistas em cena, o diretor russo emprestou uma estética Wagneriana a esse conto sombrio que investiga a nossa relação com a loucura, criando imagens inesquecíveis, reproduzidas com a tecnologia de mapping nos muros do Palácio dos Papas, uma das maiores construções góticas de toda a Idade Média. 

A narrativa de “O Monge Negro” foi cirurgicamente dividida em quatro momentos por  Serebrennikov. Quadros que se sobrepunham e se entrelaçavam deixando entrever os diversos subtextos do conto de Tchekhov, autor russo que é referência da dramaturgia e da literatura universal. Camadas narrativas elípticas, quase um acelerador de partículas dramáticas, dispositivo que aumentava de velocidade a cada nova repetição do texto. Toda a porosidade da porta entreaberta com a qual Tchekhov acena para os atores esteve presente no palco pelas mãos do encenador de 52 anos, em uma espécie de delicadeza dentro da fúria.

Tudo isso ajudado pela performance impressionante dos atores do Thalia Theater, de Hamburgo, na Alemanha, país onde encontrou asilo o agora refugiado Serebrennikov. Juntam-se aos pontos fortes da encenação o canto sobrenatural – entre lirismo e atonalidade – dos performers, e seu domínio da cena, executando coreografias de enorme plasticidade. O cenário se torna personagem na cena de Serebrennikov, e nem a ventania poderosa que soprou sobre a cena de “O Monge Negro” modificou a percepção do mobiliário cênico. Muito pelo contrário, tinha-se a impressão de que os elementos da natureza resolveram inesperadamente participar da apresentação.

"Ifigênia"

Outra atração desta 76ª edição do Festival de Avignon na noite de abertura foi a peça “Ifigênia”, dirigida pela francesa Anne Théron, a partir da releitura de um clássico da tragédia grega "Ifigênia em Aulis", de Eurípedes, autor celebrado em sua época, e grande vencedor dos famosos concursos trágicos da ágora grega, cinco séculos antes de Cristo. 

A inevitabilidade do destino, um dos preceitos-chave da tragédia grega, é colocada em xeque e atualiza a tragédia, como explica a diretora. "Não somos mais brinquedos dos deuses, ficamos cara a cara com o livre arbítrio, mas, na verdade, isso não muda nada para os homens.... Eles mesmos não conseguem sair desta engrenagem do poder que os leva à guerra. São as mulheres que dizem 'Chega', num determinado momento, 'é preciso absolutamente avançar'", contextualiza a diretora.

"É um grande texto feminista, é obvio, e o fato que ele tenha sido escrito por um homem me tocou profundamente porque isso me dá esperança. Isso me dá esperança para o futuro", diz Théron, numa referência ao texto do diretor português Tiago Rodrigues, que atualiza em "Iphigénie" o drama da jovem filha do chefe militar Agamêmnon, sacrificada "aos deuses" antes da Guerra de Troia. Rodrigues assume a partir de setembro a direção-geral do Festival de Avignon, substituindo Olivier Py, à frente do evento desde 2014.

Os espetáculos “Iphigénie” e "O Monge Negro" ficam em cartaz no Festival de Avignon respectivamente até os dias 13  e 15 de julho.

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