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Refugiado sírio conta como salvou sua mãe da guerra, mas a perdeu para a Covid-19 no Brasil

O refugiado sírio Abdulbaset Jarour, 30 anos, foi motorista de um general do Exército de Bashar al-Assad na Síria, em 2010, depois de ter sido convocado para servir o regime. Refugiado no Brasil, ele conseguiu trazer de Aleppo, em 2018, sua mãe, Khadouj Makzum, para uma nova vida em São Paulo. No entanto, ela faleceu aos 55 anos nesta quarta-feira (13), após ter contraído o novo coronavírus.

O refugiado sírio Abdulbaset Jarour, 30, e sua mãe, Khadouj Makzum. Ela faleceu aos 55 anos no dia 13 de maio no Hospital das Clínicas, em São Paulo, após ter contraído o novo coronavirus.
O refugiado sírio Abdulbaset Jarour, 30, e sua mãe, Khadouj Makzum. Ela faleceu aos 55 anos no dia 13 de maio no Hospital das Clínicas, em São Paulo, após ter contraído o novo coronavirus. © Divulgação
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"Maktub", "está escrito", diz emocionado o refugiado sírio Abdulbaset Jarour. "Tudo tem a sua hora", explica, referindo-se à morte da mãe, que faleceu em decorrência da Covid-19 no Hospital das Clínicas (SP). "Na minha religião [muçulmana], acreditamos que o destino já está escrito e que todos já têm sua hora para morrer”, conta.

“Me deixaram vê-la no caixão fechado, só dava para ver a cabeça. Gritei, chorei. Pedi perdão, me sinto culpado. Já estava traumatizado", diz o sírio, morador do bairro da Lapa, onde recebeu, em dezembro de 2018, sua mãe e sua irmã mais nova, que fugiam da guerra na "cidade-mártir" de Aleppo, após a diáspora dos outros cinco irmãos para países como Líbano, Canadá, Turquia e Alemanha. Jarour decidiu deixar a Síria em maio de 2013, quando o carro que dirigia foi atingido durante um bombardeio de Israel, e vários de seus amigos perderam a vida no incidente.

Khadouj Makzum pôde finalmente ser enterrada em São Paulo segundo os ritos da religião muçulmana graças à ajuda de lideranças da comunidade islâmica. "Fui ajudado pelos sheiks Fares, Ahmad e Mohammad, e pelo Sr. Hassan, ex-presidente da mesquita de São Miguel. Amigos brasileiros ajudaram financeiramente. Estou aliviado neste sentido, minha mãe era religiosa, porém estou anestesiado, não estou legal por dentro", diz Jarour, que respeita os rituais do Ramadã no Brasil.

"Sou muçulmano e tenho fé. O que vou dizer é um pecado, mas eu sinto que sela tivesse conseguido voltar para o Líbano, como estava previsto, ela ainda estaria viva”, diz Abdul, como é chamado pelos amigos no Brasil, relembrando a via crucis que havia enfrentado nos últimos meses, tentando fazer com que a irmã e a mãe retornassem para a casa de uma das irmãs em Beirute. A mãe, que era diabética e tinha pressão e colesterol altos, foi transferida para o Hospital das Clínicas em 22 de abril, depois de ter testado positivo para a Covid-19 em um hospital da Lapa.

“O SUS nos deu o melhor atendimento. Aqui em São Paulo, todos tentaram nos ajudar, refugiados com quem trabalho, além de outras pessoas. Consegui trazer para o Brasil três pessoas da minha família, esse é o sonho de qualquer imigrante. É um milagre”, diz. "Eles foram ótimos no Hospital das Clínicas, fizeram de tudo para salvar a minha mãe, deram todo o apoio, às vezes eu tinha a impressão de que ela era a única paciente de Covid do local, tamanha a gentileza da equipe médica conosco. Eles sabiam da nossa história”, conta Abdul, que diz já se considerar "brasileiro".

Abdul conta que as duas mulheres de sua família não conseguiram se adaptar no Brasil, após o trauma da guerra na Síria. “Quando elas chegaram, no Natal de 2018, levei-as para onde os brasileiros comemoram, fizemos amigo secreto, elas estavam entendendo a comida, foi incrível. No final do ano, levei-as para o Réveillon na praia. Queria que elas ficassem felizes. Chorava sempre que elas começavam a contar as histórias de Aleppo”, diz o refugiado, que é vice-presidente da ONG África do Coração, onde milita para defender os direitos dos refugiados de todas as origens no Brasil.

“Minha outra irmã, que perdeu o marido e se feriu  gravemente durante uma explosão em Aleppo, fugiu para a Turquia. Passou pela Grécia com a perna machucada, atravessou o mar, depois a Croácia, a Áustria, até chegar na Alemanha, onde finalmente amputaram a sua perna”, lembra o refugiado. "Outra irmã fugiu com seu marido e filhos para o Canadá, uma outra para o Iraque, outra para o Líbano e meu irmão para a Turquia", conta.

"Recebi minha irmã e mãe, mas minha vida e eu mesmo mudamos muito. O Abdulbaset Jarour que ficou na Síria é muito diferente desse que existe agora no Brasil. Minha mãe ficou mal, tinha pânico quase todos os dias, eu tinha que levá-la sempre ao Hospital Sorocabana, na Lapa. Numa dessas idas, ela contraiu o coronavírus", afirma Abdul, um dos jovens pilares da comunidade de refugiados em São Paulo, e co-criador de eventos que se tornaram globais como a "Copa dos Refugiados".

Quando o destino prega uma peça no filho dedicado

"Maktub" ou não, o destino pregou uma de suas peças no filho e irmão dedicado, que já organizava a volta da mãe e da irmã para o Líbano. “Minha mãe queria muito resgatar meu irmão que mora na Turquia, o primeiro filho, o mais velho. Era mesmo perigoso, a prefeitura de Istambul é de extrema direita, contra os refugiados sírios, ele corria o risco de ser deportado”, diz. "Conversei com o embaixador brasileiro na Turquia e consegui trazer meu irmão, que chegou em julho de 2019, num péssimo estado psicológico", conta o refugiado, que também é professor de árabe em São Paulo.

“Minha irmã estava muito mal. Ela queria sair daqui de qualquer jeito. Pensei ‘elas estão certas, são elas que sabem o que querem’. Fiz a minha parte”, afirma o refugiado. “Comprei a passagem da minha irmã, e ela saiu do Brasil no final de fevereiro, em direção ao Líbano. A minha mãe já estava preparada para deixar o país. Fui na embaixada da Síria para tirar o passaporte dela. Tirei o da minha irmã antes porque sua validade estava para acabar e seríamos obrigados a pagar US$ 300 para renovar o documento", lembra.

"O passaporte da minha mãe não ficou pronto a tempo. Ela contraiu o coronavírus antes. Eu estava esperando a liberação do passaporte dela para comprar a passagem para Beirute”, lamenta Abdul, emocionado.

“Faço esse desabafo e dou essa entrevista por dois motivos”, diz Abdul. “Peço aos que leem essa matéria que façam orações para minha mãe. E peço que tentem levar a sério [a pandemia] e realmente respeitar as orientações para combater o coronavírus”, conclui Abdulbaset Jarour.

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