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"2020: bom para Maduro, ruim para a Venezuela e muito pior para a democracia", diz analista

Nicolás Maduro só tem a comemorar. Para o chavismo 2020 foi de grandes conquistas. O ano, que começou incerto e sob pressão internacional, fechou com a consolidação no poder do herdeiro político de Hugo Chávez. Mesmo a tempestade que se aproximava do país petroleiro representada pela escassez de gasolina foi usada para alinhavar contratos com países aliados. O presidente transformou a pandemia em uma grande aliada, aproveitando para estagnar os oponentes. Com manobras astutas, foi sedimentada a chamada dinastia Maduro em uma Venezuela empobrecida e cada vez mais longe da democracia.

Uma mulher vota em uma escola de Caracas, em 6 de dezembro de 2020, durante as eleições legislativas da Venezuela.
Uma mulher vota em uma escola de Caracas, em 6 de dezembro de 2020, durante as eleições legislativas da Venezuela. Cristian Hernandez AFP
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Por Elianah Jorge, correspondente da RFI na Venezuela

A ridicularização da figura de Juan Guaidó, então reconhecido como presidente interino por mais de 50 países, tentando saltar a grade da Assembleia Nacional, em janeiro deste ano, foi uma palinha do que o chavismo estava disposto a fazer para reconquistar o Poder Parlamentar. Foi com a arbitrária posse de Luis Parra como chefe do Parlamento que surgiu a “nova oposição”, com quem o chavismo sentou para conversar e ampliar ações. Ponto para Maduro.

“Desde o começo de 2020 Maduro tentava tirar o poder de Juan Guaidó sufocando-o por meio de ações para reduzir a oposição. Isso aconteceu quando colocou uma junta na direção da Assembleia Nacional formada por aliados do presidente Maduro. Este grupo tirou espaço físico (da oposição) na Assembleia Nacional”, explica o analista político Dimitris Pantoulas.

Enquanto isso, os Estados Unidos reforçavam as ameaças. Chegaram a oferecer US$ 15 milhões por informações sobre o paradeiro de Nicolás Maduro e de integrantes da cúpula chavista. O ambiente político na Venezuela era de tensão.

A maré começou a ficar favorável em meados de março, quando foram divulgados os primeiros casos da Covid-19 no país. De imediato foi imposta o lockdown radical, com espaço aéreo e fronteiras terrestres fechadas.   

Com o medo no ar, a população freou a rotina. Até mesmo as centenas de pessoas que reviram lixo em busca de comida sumiram das ruas.

Para abrandar a fome, abundaram as hortas familiares. Quem não podia plantar, encontrou alívio nas árvores frutíferas espalhadas no país.

Um milhão de bolívares

Sem poder combater o terceiro ano de hiperinflação, Maduro viu o bolívar perder espaço para o dólar. Ele garante esta não é nem será a moeda oficial da Venezuela, apesar do tabelamento de preços dos alimentos em dólares. Um único dólar chega a custar mais de 1 milhão de bolívares, de acordo com a taxa oficial do Banco Central venezuelano. Já o salário mínimo é de 800 mil bolívares.

“A dolarização de fato que acontece na Venezuela aumenta a desigualdade social. Por outro lado, surge uma economia de “bodegones”, lojas que vendem produtos importados 100% mais caros que nos Estados Unidos. Cerca de 80% da população não pode adquirir esses bens”, descreve o deputado e economista José Guerra.

Ainda não há dados atualizados sobre a fome e a desnutrição neste país dito socialista. Mas a Venezuela está em quarto lugar na lista de países em crise alimentar, superando inclusive a Etiópia, de acordo com um relatório divulgado em abril pela Organização das Nações Unidas.   

O próximo problema de Maduro tinha tudo para balançar a cadeira presidencial. A nação petroleira e sócia-fundadora do Organização de Países Produtores de Petróleo (OPEP) ficou sem gasolina. A falta de investimentos nas refinarias, somada a um sistema corrupto e à asfixia causada pelas sanções à produção petroleira local reduziram a geração de combustível. Isso impactou a atividade econômica, que retrocedeu mais de 25% no primeiro trimestre deste ano, de acordo com fontes não oficiais.

Enquanto nos canais estatais eram anunciadas medidas para evitar o contágio do novo coronavírus, nas imediações dos postos de gasolina as filas abundavam.

Dando de ombros aos Estados Unidos, que ameaçavam novas sanções, Maduro começou a importar combustível do Irã em troca de ouro extraído do sul venezuelano. A chegada dos cargueiros iranianos representou alívio à população e, de certa forma, ao governo. A mudança de status de país produtor-exportador para agora importador, e o início do pagamento em dólares do outrora gratuito combustível gerou apenas indignação.

A hora da virada

“O lockdown e a falta de gasolina foram fatores que mudaram o foco de atenção. Sem contar que a falta de gasolina na Venezuela não teve o resultado esperado em torno de possíveis protestos”, descreve Pantoulas.

Este foi o ponto da virada. Além da indireta mensagem aos sancionadores, o governo de Maduro dava sinais de que estava disposto a trocar bens e serviços com países aliados e que ignorem as ameaças internacionais.    

A partir daí o Irã ampliou as exportações de combustível e de alimentos ao país socialistas, inclusive abrindo um supermercado com produtos iranianos na capital Caracas.

No setor político, Juan Guaidó via sua popularidade minguar. O chamado para defender os médicos - que lutavam na linha de frente contra a Covid-19 sem equipamentos adequados – virou chacota. Tanto Guaidó como Maduro amargaram na predileção popular. De acordo com um instituto de pesquisas, o presidente venezuelano chegou a ter 80% de rejeição.

O país também amargou com os constantes cortes de eletricidade, com a falta de água encanada e com a escassez de botijões de gás. Diversas cidades do interior venezuelano foram foco de protestos, abafados pela repressão das forças de segurança ou pela falta de comunicação traduzida pela falta de energia e de conexão de internet nos recônditos venezuelanos.      

“Para Maduro a Covid-19 foi uma aliada, porque qualquer possibilidade de ação política que havia foi bastante reduzida”, explica Pantoulas.

Dinastia no poder

Um forte golpe para a já enfraquecida oposição venezuelana foi a fuga, em outubro passado, de Leopoldo López. O opositor estava hospedado na casa do embaixador da Espanha em Caracas após o falido golpe de maio de 2019. A decisão de López foi interpretada como uma vitória de Maduro frente a seus opositores.   

Com opositores presos, exilados, na clandestinidade, e outros tantos inabilitados politicamente, Maduro preferiu manter o calendário eleitoral determinado pela Constituição. A vitória estava garantida. O único que faltava era a eleição.  

“Maduro, ao convocar as eleições de 6 de dezembro, sem fazer negociações e sem pactuar, além dos erros da oposição, tirou o poder que Juan Guaidó tinha de mobilizar, inclusive da única liderança dentro da oposição”, destaca Pantoulas.

Na primeira semana de dezembro a eleição aconteceu com um alto número de abstenções. Graças a manobras do Conselho Nacional Eleitoral para satisfazer demandas dos partidos, o número de assentos na Assembleia passou de 167 para 277. Entre os ganhadores das parlamentares estão Nicolás Maduro Guerra e Cília Flores, ambos familiares diretos do presidente.

“Maduro está consolidando seu poder pela primeira vez em anos. Está fazendo uma dinastia, colocando filho e esposa na Assembleia. Isso está se transformando em um regime controlado pela figura presidencial”, alerta Pantoulas.

Ex-motorista de ônibus

A partir de 5 de janeiro o parlamento venezuelano volta às mãos do chavismo. O presidente, um ex-motorista de ônibus, passa então a dominar todos os poderes do país.

Com a vitória articulada, a Assembleia Nacional Constituinte, formada sob a justificativa de reescrever a Constituição criada pelo ex-presidente Hugo Chávez, foi dissolvida. Críticos afirmam que a meta da ANC era barrar as decisões do parlamento opositor. 

Outro movimento favorável ao chavista foi a saída de cena de Donald Trump, que perdeu a eleição norte-americana. Além da mudança no jogo, Maduro terá em Joe Biden um adversário mais moderado e cuja agenda não deve priorizar a Venezuela.

“A opinião do mundo em relação a Maduro vai mudar porque ele já não terá uma oposição. Além disso, os Estados Unidos teriam que lidar diretamente com ele e não por meio de terceiros. Então, a relação com os Estados Unidos será de igual para igual”, explica Dimitris.

Guaidó insiste que um número maior de países irá desconhecer a nova Assembleia Nacional. Ele também ignora os riscos de ser preso ao querer a extensão de seu cargo de presidente parlamentar.

Por sua vez, Nicolás Maduro continua estendendo pontes com países aliados. No último dia 29, seu governo assinou um convênio com a Rússia para a aquisição da vacina Sputink V. Cerca de 10 milhões de venezuelanos serão vacinados no primeiro trimestre de 2021.  

“2020 foi um ano muito bom para Nicolás Maduro, muito ruim para a Venezuela e muito pior para a democracia”, conclui Pantoulas.

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