Acessar o conteúdo principal

Venezuelanos relatam como é viver em um país sem perspectivas

“Semana passada começou o campeonato espanhol e eu estou encantada”, diz Emma Sánchez, uma jornalista venezuelana, de 58 anos, que no dia-a-dia recorre ao futebol para escapar da realidade de um país onde os índices econômicos estão em queda livre. “O esporte é uma fuga, uma maneira diferente de ver a vida”, explica ela que diariamente lê os sites de notícias venezuelanos sempre começando pela seção esportiva.

O estudante Daniel Echeverría
O estudante Daniel Echeverría © Arquivo Pessoal
Publicidade

Elianah Jorge, correspondente da RFI em Caracas

Ela e milhares de venezuelanos buscam de alguma maneira alegrar o dia neste país que há seis anos está em recessão. Tarefa difícil para os quase 22 milhões de habitantes de uma nação à deriva. Nas ruas, impressiona a quantidade de pessoas com o olhar vago de quem não tem perspectiva.

A Venezuela até 2011 ocupava o quarto lugar no ranking do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina, em 2019 caiu para o 13°lugar, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

Nos primeiros cinco meses de 2020 a inflação acumulada foi de 295,9%. Os salários dos venezuelanos estão sendo pulverizados. Com o salário mínimo, de cerca de quatro dólares, é possível comprar quatro sacos de arroz.

Falta de gasolina era algo inimaginável na Venezuela

Nos últimos anos a queda na produção de petróleo impactou a entrada de dinheiro nos cofres do país. A outrora pujante indústria petroleira nacional perdeu capacidade de produção por causa da falta de manutenção das principais refinarias, da corrupção e das sanções aplicadas pelos Estados Unidos com o objetivo de asfixiar o governo de Nicolás Maduro.

Graças ao Irã a população agora tem combustível. De março deste ano até o início de junho havia escassez de gasolina neste país petroleiro.

“Se alguém me dissesse que faltaria gasolina na Venezuela, eu diria que a pessoa estava louca. Mas isso é uma realidade”.     

Emma é uma das pessoas que nos últimos anos tiveram que se adaptar à realidade do país e mudar radicalmente o estilo de vida.

Antes, com “um salário normal de jornalista”, ela viajava ao exterior até três vezes por ano. Paris, Bélgica, Nova York, Washington DC eram destinos corriqueiros.  Sempre que queria, pegava um avião para ir a Barquisimeto, sua cidade natal.

Há três semanas ela teve que percorrer os 364 quilômetros que separam Caracas da cidade onde mora sua família. Foi um suplício. Era quarentena e faltava gasolina em todo o país. Ela precisou pagar 60 dólares - valor 15 vezes superior ao salário mínimo - por uma vaga em um táxi compartilhado para conseguir se despedir da irmã que estava à beira da morte.

“Foi um dos piores momentos da minha vida. Chegando lá peguei o carro da família e tive que ir à cidade vizinha para comprar gasolina no mercado paralelo para então poder resolver os trâmites legais do falecimento”.

Este foi mais um capítulo na vida desta mulher que já teve carros, mais de 50 pares de sapatos de salto alto e que frequentava constantemente restaurantes no país e no exterior.

Sem saber, Curaçao foi a última viagem internacional que Emma fez. De 2015 em diante nada seria como antes na vida dela, e também para a maioria dos venezuelanos.  

“O impacto forte foi em 2015 quando não pude alugar um apartamento e tive que me mudar para um quarto. Nunca pensei em minha vida que iria morar em um quarto”.

Com a redução do espaço de sua moradia, ela foi se desfazendo dos bens, inclusive dos sapatos. “A cada peça que eu dava, passava pela minha cabeça um trecho do filme da minha vida”.

Em oito anos, o PIB despencou

De acordo com a economista Tamara Herrera, os problemas econômicos do país se agravaram em 2014.

“Houve a forte queda dos preços internacionais do petróleo, além da correção do tipo de câmbio que desvalorizou o bolívar. O gasto público cresceu e o cenário foi o da “estagflação” - a recessão com altas taxas de inflação. Esse cenário ficou ainda mais evidente em 2015, quando a desvalorização da moeda nacional e a queda do preço do petróleo causaram a redução do PIB nacional”.

Em apenas oito anos, a contração do Produto Interno Bruto foi radical. Ele passou de pouco mais de U$334 milhões em 2011 para U$63 milhões em 2019, de acordo com o FMI.

“Nunca fui muito responsável economicamente, mas conseguia me manter com o meu salário. Agora recebo ajuda de familiares e de amigos para me manter”, explica Emma.

Quanto à alimentação, ela come “muito carboidrato e vegetais, porque são mais baratos. A cada dia tudo aumenta muito. Antes comprava de tudo e fazia três refeições e agora as pessoas comem o que conseguem e o que podem pagar”.

Em maio deste ano a inflação foi de 38,6%, de acordo com o Banco Central da Venezuela.

A saída de tantos venezuelanos do país, de certa forma ajudou Emma. Ela está cuidando do apartamento de uma amiga que emigrou e agora não precisa pagar aluguel.

“Mais de cinco horas na fila para comprar dois quilos de arroz”

O que a jornalista conta não é muito diferente da vida de Antonio David. Em 2017, cansado da massacrante rotina e de gastar horas em filas em busca de comida, este advogado de 33 anos decidiu sair do país.

“Para ir ao trabalho eu acordava às cinco horas da manhã, esperava até uma hora pelo transporte. Voltar para casa era ainda pior. Caminhava cerca de uma hora porque os ônibus estavam cheios. Sem contar que eu ficava na fila por mais de cinco horas esperando para comprar dois quilos de arroz ou de harina pan – a farinha de milho usada para fazer a arepa, o prato típico venezuelano.

Deixar Cagua, cidade do interior da Venezuela, para ser um dos mais de quatro milhões de venezuelanos que saíram do país, foi motivado pela meta de enviar dinheiro aos pais.

Era plena época da escassez de alimentos. Ou se fazia fila sem a garantia de conseguir comprar a comida, ou então se pagava mais caro na mão de um revendedor ou bachaquero (intermediário ilegal que compra e revende produtos básicos).

“Antes da chegada de Chávez ao poder (1999-2013) a alimentação era muito boa. Todas as semanas meus pais iam ao supermercado e podíamos comprar tudo o que queríamos. Lembro que antes, eles recebiam o salário quinzenalmente, como ainda recebem. A diferença é que antes o dinheiro alcançava para toda a quinzena e ainda sobrava. Lembro que comprávamos até dois carrinhos de compras no supermercado e com absolutamente tudo: de doces a eletrodomésticos e ainda assim sobrava dinheiro. Agora isso é impossível”.

De acordo com Tamara Herrera “2016 foi o ano da penúria social e a estagflação era nítida. Já em 2017 não há a abundância de moeda estrangeira nas mesmas proporções de antes para compensar e cobrir a fragilidade da economia interna e amenizar a inflação. Em outubro de 2017 estourou a previsível hiperinflação”.

Xenofobia

O destino planejado por Antonio era a Argentina, mas por situações alheias à sua vontade, acabou ficando em Lima onde já estavam outros parentes e amigos. Foi lá que ele conheceu a xenofobia. Sem poder exercer a advocacia, conseguiu apenas se manter.

“(Os peruanos) preferem empregar seus nacionais e não os estrangeiros. Tive que trabalhar no que conseguia: ajudante de cozinha, operador de máquinas, vendedor ambulante e, por último, limpando apartamentos”.

Frustrado, Antonio decidiu voltar à Venezuela em 2019.

Alguns venezuelanos que estão na capital peruana foram contratados para transportar corpos de pessoas que morreram em decorrência da Covid-19. 

Ele acha que a situação do país é um pouco melhor do que quando emigrou:

“Agora a comida é cara, mas dá para conseguir”.

Mas alguns problemas se agravaram. O que parecia ser situações exclusivas dos estados Táchira e Zulia, agora é uma questão nacional:

Ficamos sem eletricidade por durante três ou quatro horas todos os dias. Também há picos de energia e temos que estar atentos para apagar os eletrodomésticos para que eles não queimem com a variação da voltagem. Também é muito raro que chegue água. Temos que instalar uma bomba no encanamento da rua para encher a caixa d´água de casa. E um botijão grande de gás, de cerca de 40 quilos, custa 620 mil bolívares e dura pouco mais de um mês.

O salário mínimo só dá para comprar a comida

Antonio não acredita no futuro do país, mas não tem alternativa:

“Como está a situação hoje, se não fosse pelos meus pais, eu não teria absolutamente nada, porque é impossível conseguir comprar as coisas aqui. O dinheiro não alcança para comprar nada além de comida. Não penso em voltar a sair do país. Meu passaporte está vencido e renová-lo é muito caro e não é fácil economizar.

Nas últimas semanas o preço do passaporte venezuelano voltou a subir. Agora custa cerca de 200 dólares.

Situação parecida à de Antonio e de Emma é vivida por Daniel Echeverría. Este universitário mora com a mãe no bairro de Cementerio, na zona oeste de Caracas. Ele tem 22 anos. Nasceu um ano antes da chegada de Hugo Chávez (1999-2013) ao poder.       

.

“Lembro que minha mãe, sozinha, mantinha eu e meus dois irmãos. Tivemos uma boa infância graças ao trabalho dela em um ministério. Como classe média, tínhamos acesso a tudo, não tínhamos carências. Tínhamos acesso à comida, não havia problemas de escassez. Não havia tanta criminalidade. O poder aquisitivo era outro. Eram tempos bem diferentes. O salário valia e dava para alimentar toda a família”.

As mudanças econômicas no país começaram a se agravar. Daniel conta que entre 2012 e 2014 os “irmãos tiveram que trabalhar para ajudar em casa”.

Nesse período, a Venezuela vivia uma grande agitação política e econômica. Primeiro,  com a disputa presidencial de 2012 entre Hugo Chávez e o opositor Henrique Capriles. O barril de petróleo ainda estava em alta e havia dinheiro nos cofres públicos venezuelanos. Para arrebatar os eleitores, o chavismo lançou a “Missão Moradia” (Misión Vivienda, em espanhol), um grande plano habitacional que oferecia residências a milhares de venezuelanos. Chávez foi reeleito, mas a economia nacional ficou dilapidada. Em 2013, o presidente morre deixando Nicolás Maduro, então Ministro das Relações Exteriores, à frente do país.

Tamara Herrera explica que as prioridades mudaram no âmbito político-econômico:

“Em 2013 foi um ano de reajuste no chavismo após o desaparecimento do líder que equilibrava as lutas internas pelo poder. Em 2014, superada a crise da ausência do líder, esse chavismo chega a falar em “abertura controlada”. Eram precisos ajustes para não afastar os investimentos e prejudicar o fortalecimento da economia. Em 2014 houve uma forte queda nos preços do petróleo, uma correção do tipo de câmbio, traduzido em uma desvalorização do bolívar”.

O país ia rumo à hiperinflação. Daniel conta que “deixamos de fazer grandes compras, reduzimos as saídas por lazer”.

Ser jovem na Venezuela de 2020

Daniel gosta de viajar. Um de seus sonhos é conhecer melhor seu país, mas fazer planos na Venezuela é algo complexo:

“Antes da pandemia eu e minha namorada organizamos durante quatro meses uma viagem à Ilha de Margarita. Precisamos juntar pelo menos 600 dólares para a viagem. Até agora, economizamos menos da metade deste valor. Em quatro meses, e com muita dificuldade, consigo juntar não mais do que 100 dólares”.

Sem trabalho fixo e sem se identificar com os líderes políticos do país, Daniel se dedica ao União Social, o movimento que criou em 2016.  

“Estamos em uma situação muito difícil e alguém tem que fazer o trabalho de cuidar daqueles que não têm o suficiente e pelos desprotegidos. É daí que nasce a vontade de ajudar. A recompensa é sempre na alma”.

Constante resiliência

O cotidiano dos venezuelanos mais se parece uma prova contínua de resistência. O sorriso, algo abundante em épocas passadas, cada vez é mais raro no rosto das pessoas.

“Esse desânimo é resultado do esgotamento que o venezuelano acumula por sofrer, por tentar fazer. Por exemplo, a ação cotidiana que é tomar um banho, aqui significa uma cadeia de ações que vai além de apenas abrir a torneira. Significa buscar água, colocá-la em um recipiente, transportá-la, fervê-la, para então poder tomar banho. Para muitos que moram aqui, significa um processo de duas horas ou mais. Temos que trabalhar mais para enfrentar a crise econômica. Hoje em dia, nosso estado de ânimo é de esgotamento, o que eu chamo de “as emoções da crise”, explica a psicóloga e pesquisadora Yorelis Acosta.

Daniel sabe bem o que é isso. A falta de água potável o levou a contrair uma bactéria no sistema digestivo. Para conseguir fazer o tratamento, ele contou com a ajuda do irmão, que economizava para emigrar do país e preferiu adiar a viagem para ajudá-lo a comprar os remédios.   

“Minha juventude tem sido precária em saúde e dinheiro. Minha diversão é ver desenhos animados japoneses, navegar no telefone, já que não tenho internet”.

“Em outros países os jovens se tornam independentes, saem, viajam. Aqui a maioria dos adolescentes e adultos estão tendo que ficar nas casas de suas mães; trabalham por um salário mínimo que dá apenas para comprar até cinco produtos da cesta básica. Muitos estão desnutridos, outros estão deprimidos”, conta o jovem.

Para a psicóloga e pesquisadora Yorelis Acosta, a vida na Venezuela “é um carrossel de emoções e talvez seja por isso que o venezuelano se sente tão esgotado emocionalmente, sem forças para levantar e continuar. Para alguns a saída tem sido tirar a própria vida ou sair do país para escapar do sofrimento”.

Nos últimos anos, o número de suicídios no país, de pessoas de idades variadas, inclusive de crianças, aumentou consideravelmente. 

Daniel acredita que se a situação da Venezuela continuar assim, haverá mais deterioração dos valores socioculturais e o surgimento de “uma sociedade inadaptada, que tem tanta resiliência a que violem seus direitos”.

"Não vejo um bom futuro para o venezuelano. Muitos não têm um trabalho que lhes permita comprar um carro, um telefone ou mesmo um quilo de carne para comer".

Voltar ao tempo em que a Venezuela era um paraíso não é algo fácil. O país está imerso em diversas crises, e o panorama econômico pós-pandemia não sugere uma melhora.

A economia ainda é o grande problema dos venezuelanos. O país passa por um processo de dolarização de fato, onde até mesmo a gasolina está sendo cobrada em moeda estrangeira. Os alimentos voltaram ao comércio, mas agora o problema é conseguir dinheiro para comprá-los. A quantidade de pedintes nas ruas da capital cresce a cada dia.  

Para o economista Eduardo Semtei, “nas atuais condições de sanções, há uma asfixia do setor público que parece impossível de superar. Apenas o setor privado nacional e internacional tem oxigênio suficiente para sobreviver e recuperar a Venezuela. Sem o setor privado é impossível sonhar com o desenvolvimento e a paz”.

De acordo com Tamara Herrera, “chegamos a esta situação que vai além da penúria. Já é de miséria espalhada em todo o país. Apenas um grupo minoritário ainda pode se prover de alguma maneira”.

Em março deste ano, a organização assistencial Caritas Venezuela divulgou que 34% das crianças venezuelanas estão em situação de desnutrição crônica.  

“O que vemos nas ruas, através da falta de ânimo das pessoas, tem a ver com o reflexo da condição de vida das pessoasnão ter perspectivas de um futuro melhor gera desânimo e depressão. As pessoas parecem preocupadas, buscando a solução de seus problemas. Estamos em condições de sobrevivência e percebo muita apatia, resignação e tristeza persistente em uma parcela muito importante da população”, explica Herrera traduzindo em sentimentos o olhar dos venezuelanos nas ruas do país. 

 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.