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Fome Zero seguirá como meta da ONU para erradicar fome no mundo, afirma José Graziano

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Após mais de sete anos na direção geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), José Graziano da Silva prepara-se para concluir o segundo e último mandato em junho próximo. Idealizador do programa Fome Zero que erradicou a fome no Brasil em somente uma década e virou modelo global, Graziano recebeu no início deste mês uma homenagem da União Africana pela contribuição para erradicar a fome também no continente africano.

José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO).
José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO). R. Belincanta
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Rafael Belincanta, especial de Addis Abeba para a RFI Brasil,

O reconhecimento coincidiu com a divulgação da notícia de que a fome na África voltou a aumentar. Apesar disso, Graziano afirmou ainda ser possível erradicar a fome no continente e no mundo caso a comunidade internacional empreenda esforços “como nunca antes visto” e que um desafio adicional está sob a mesa: lidar com a epidemia de obesidade e sobrepeso que afeta todos os quadrantes do planeta.

Nesta entrevista exclusiva concedida em Addis Abeba após a entrega do prêmio, Graziano fez um balanço do seu mandato e falou sobre o trabalho para regulamentar e alertar a população sobre alimentos não saudáveis, da globalização da obesidade, do sucesso do Fome Zero no mundo e das políticas de segurança alimentar do novo governo.

Hoje no mundo o número de pessoas obesas é quase igual ao de desnutridas. Como enfrentar esse novo cenário?

A busca por uma dieta saudável faz com que a FAO e a Organização Mundial da Saúde (OMS) se juntem para combater a epidemia de obesidade que já tem elementos claramente caracterizados como o consumo de alimentos com alto teor de açúcar, sal e gorduras saturadas. Nossa busca conjunta por dietas saudáveis abriu uma fronteira para nos associarmos à Organização Mundial do Comércio (OMC) e é aqui que entra a novidade. A OMC não tem nada a ver com saúde, tem a ver com regras para produtos importados e quer que essas regras sejam definidas por bases científicas. A OMC quer assegurar que os produtos importados não façam mal à saúde, que sejam inócuos. Nesse ponto, a FAO junto com a OMS aplica o Codex Alimentarius para fixar normas e standards que facilitem o comércio e impeçam que um país utilize normas ou restrições a importações de produtos para se beneficiar de um processo competitivo desleal. Essa é a nossa função e agora também queremos garantir que o produto seja saudável.

O Brasil é um dos países com mais obesos no mundo. Como diminuir o consumo de alimentos não saudáveis?

Inicialmente, é necessário que os países definam as suas normas e standards de dietas saudáveis. Já estamos conseguindo um progresso bastante importante na definição de quantidades máximas de açúcar nas bebidas gasosas, vários países já adotaram esse limites, inclusive o Brasil. Se discute se o limite que o Brasil adotou é ideal ou não, mas essa é uma outra discussão porque o Brasil já venceu a primeira etapa dessa discussão que é o direito do Estado intervir em dizer o que é saudável ou não. Isso até então era um atributo individual ou da família, a mãe que decide se a comida é ideal ou não para a criança. Hoje estamos entrando neste espaço que era privativo da família porque isso tem um custo cada vez maior nos orçamentos de saúde dos países: a obesidade custa 2,5 trilhões de dólares ao ano. Esse é o custo aproximado das consequências dos conflitos armados, é o equivalente das consequências do uso do tabaco. Aliás, as restrições ao uso do tabaco estão tendo um notável progresso e os limites na ingestão de açúcares deve ir pelo mesmo caminho, é preciso impor restrições cada vez maiores ao açúcar. Primeiro, aumentar as taxas para quem consome. Estamos começando a ver vários países aplicarem isso com resultados muito auspiciosos. O México foi um deles, aumentou a taxa sobre a quantidade de açúcar nas bebidas açucaradas e o consumo diminuiu drasticamente. Em outros países não se consegue essa eficiência simplesmente pela taxa porque são países com alto poder aquisitivo, o que acaba não afetando muito o consumo. Mas esse é um dos caminhos.

Como alertar o consumidor sobre os alimentos mais perigosos à saúde?

O caminho mais promissor que encontramos até agora é conseguir colocar uma etiqueta no produto que alerte o consumidor. Essa etiqueta hoje tem duas formas: uma delas é o famoso sinal verde, amarelo e vermelho. Contudo, esse sistema tem algumas falhas. Um produto como o mel provavelmente seria etiquetado como vermelho, mas é um produto saudável se consumido em determinada escala. Portanto, nós preferimos uma etiqueta na forma de tarjas pretas ou símbolos que alertem o consumidor para os elevados níveis de açúcar, sal e gorduras saturadas. Pensamos que a restrição da propaganda desses produtos, sobretudo para crianças, na televisão e na internet possa ser muito eficaz. Essa restrição funcionou com a propaganda de armas de brinquedo e cigarros e agora queremos fazer o mesmo com propagandas de produtos como salgadinhos e outros alimentos artificiais que definitivamente não são saudáveis.

Em junho termina o seu segundo mandato à frente da FAO, que balanço faz destes quase 7 anos e meio?

Quando entrei na FAO eu tinha um desafio muito grande porque substituía um africano após 18 anos. Jacques Diouf foi considerado um diretor que fez grandes mudanças e atualizou a organização, criou os nossos escritórios descentralizados. Por outro lado, eu tinha que corresponder a essa expectativa de uma organização que tinha perdido o elã, a força, que estava ausente dos grandes temas internacionais. E não só trazê-la de volta aos temas internacionais, mas dar-lhe mais agilidade, torná-la mais eficiente na gestão dos recursos. A FAO como todo o sistema Nações Unidas ainda gasta muito, poderia ser muito mais eficiente na forma do seu gasto e este é um desafio para todos nós. Além disso, havia o desafio de substituir um africano mas manter a África como prioridade porque não há dúvida que no mandato da FAO nos setores agrícolas incluindo florestas, pesca, água e solo, o continente africano é um dos que mais necessita de ajuda técnica. Então, eu tinha esse duplo desafio de organizar a instituição e manter a África como prioridade. Acredito que fizemos progressos e a FAO hoje está presente nos grandes temas, esse tema da alimentação saudável é um tema de vanguarda, mas ao mesmo tempo conseguimos manter uma presença contínua na África.

Como foi receber o prêmio da União Africana?

Eu fiquei muito emocionado com essa homenagem da União Africana. Eu acho que foi um reconhecimento à FAO acima de tudo. Eu entendo que a premiação que foi entregue a mim foi um reconhecimento ao trabalho da FAO feito na região, um reconhecimento que para a FAO é um muito importante, atesta a nossa presença nos países africanos. Eu sempre repito o que disse na primeira entrevista após a minha eleição: que eu gostaria de ter na FAO uma organização do conhecimento com os pés no chão. Não da grande ciência, mas daquela ciência e conhecimento que podem ajudar os agricultores a resolverem seus problemas e isso é um bom exemplo de que está funcionando.

O Fome Zero é a maior herança do seu mandato?

Trouxemos do Brasil uma série de exemplos que foram utilizados no Fome Zero, que foi o programa de maior sucesso até hoje implementado para erradicar a fome. Não há um outro exemplo na era moderna de um país com mais de 200 milhões de habitantes que tenha conseguido erradicar a fome em menos de uma década, como foi o caso do Brasil entre 2003 e 2010. O que fizemos foi transplantar programas do tipo merenda escolar com compras de agricultura familiar, assim como o programa de cisternas que na região do Sahel, por exemplo, que é muito significativo. É impressionante o reconhecimento que existe do fato de termos transplantado uma série de tecnologias, algumas inclusive desenvolvidas pela Embrapa, como as ‘barraginhas’, onde um leito seco do rio é coberto com um plástico especial e quando vem a chuva aquela água fica retida ali, preservada, em vez evaporar ou ser drenada. Todo um conjunto de tecnologias muito simples que foram aplicadas em diferentes países da África com muito sucesso. Tudo isso explica esse reconhecimento pela União Africana, um reconhecimento também do apoio que tivemos do Instituto Lula, o próprio Lula esteve aqui em Addis Abeba em 2013. Eu me emocionei muito ao lembrar dele sentado na primeira fila com vários chefes de Estado quando lançamos o Fome Zero para a África que, no ano seguinte, se refletiu na Declaração de Malabo para a erradicação da fome na África até 2025.

Erradicar a fome é a segunda meta de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para 2030. O programa Fome Zero segue com o término do seu mandato?

Esse programa segue porque é um programa conjunto da FAO com a União Africana e seu parceiros. O Banco Africano de Desenvolvimento tem sido um dos grandes apoiadores da nossa iniciativa, um dos grandes financiadores desses programas. Além disso, contamos com outras organizações regionais como o Centro Internacional para a Pesquisa Agrícola em Áreas de Seca (ICARDA), que realiza toda a parte de novos métodos de irrigação em associação com a FAO. Também conseguimos mobilizar uma grande quantidade de organizações da sociedade civil e, assim como fez a ASA (Associação do Semi-Árido) com o programa 1 milhão de cisternas no nordeste brasileiro, nós estamos conseguindo fazer o mesmo para construir cisternas na região do Sahel.

Imaginava que programas locais brasileiros poderiam se tornar globais?

Essas coisas não acontecem por acaso, acontecem porque por trás disso há muito trabalho, muita persistência. Eu acho que tanto por parte dos nossos parceiros como por parte da FAO, acreditar que erradicar a fome é possível norteou todo esse trabalho de persistência. A cisterna não é uma invenção da FAO nem da ASA, a cisterna é uma invenção milenar dos árabes. O que fizemos foi adaptar isso às condições simples do semi-árido para que uma família que mora numa tapera pudesse construir uma cisterna e captar a água da chuva a partir de um telhado com um encanamento muito simples. Recentemente, eu inaugurei uma cisterna escolar no Níger e outra no Panamá, situações bem distintas. No Panamá era numa comunidade insular indígena que tinha um problema de dar água salobra para as crianças, o que estava comprometendo o funcionamento dos rins das crianças. Construímos uma cisterna com um pequena bomba elétrica movida a energia solar para que as crianças tivessem água em bebedouros. Depois de alguns meses eu fui inaugurar outra cisterna na região central do Níger, que é uma região quase desértica, é a mesma tecnologia aplicada lá no semi-árido, os dois lugares têm sol abundante. Nesse caso, além de levar a água, também mantê-la em um certo nível de refrigeração. São inovações que vamos introduzindo com o tempo, mas a ideia é muito simples: coletar água que está sendo desperdiçada e torná-la disponível.

Como avalia as políticas de segurança alimentar do novo governo brasileiro?

Eu acho que o Brasil está num momento de uma redefinição de suas prioridades políticas a partir de um processo bastante complicado de rever suas políticas anteriores. Eu acho que temos esperar um pouco antes de começar a falar de retrocesso, de recessão. Eu tenho uma grande esperança que a sociedade brasileira, que é uma sociedade muito desenvolvida, muito organizada, saiba encontrar seus próprios caminhos. Eu acho que o novo governo tem uma plataforma diferente dos governos anteriores e nem por isso ele é melhor ou pior, ou é legítimo ou ilegítimo, eu acho que vale a pena esperar para ver que resultados vamos alcançar com isso. Acho que é cedo para julgar, mas devo reconhecer que alguns indícios não são auspiciosos no momento.

 

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