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URSS

"Sou muito mais soviético do que brasileiro", diz filho de Prestes sobre a Rússia

Filho de Luís Carlos Prestes e Maria Ribeiro, Yuri Ribeiro desembarcou na União Soviética com oito irmãos em 1970, quando tinha apenas seis anos. Não leva o sobrenome Prestes, porque, nascido depois do golpe de 1964, seus pais nunca se casaram oficialmente. Carrega somente o sobrenome da mãe, Ribeiro, que, por sinal, é falso. Nome de guerra de Altamira Rodrigues Sobral, segunda mulher de Prestes.

Yuri Ribeiro: de Moscou para o Rio de Janeiro.
Yuri Ribeiro: de Moscou para o Rio de Janeiro. Arquivo pessoal
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Vivian Oswald, de Moscou, especial para a RFI

Yuri viveu 30 anos em Moscou, da infância à universidade, onde se formou em História. As lembranças do período soviético   chegou a viver a época da qual os russos sentem saudades   são, em geral, positivas. Reconhece ter sido feliz na Rússia, admitindo, porém, a dificuldade de explicar o que era a vida no mundo soviético.

Hoje, Yuri vive no Brasil. No dia 27 de outubro, comemorou a inauguração do Memorial Luís Carlos Prestes, em Porto Alegre, obra de Oscar Niemeyer, coincidindo com o período das celebrações do centenário da Revolução de 1917. Uma forma de lembrar a história do pai e uma parte da história do país. “Passamos por várias etapas. Ele vai ser mais admirado por uns, mais odiado por outros. É uma história muito relevante. Dentro da própria família havia quem o achasse um lunático ou sonhador. De valor material, nunca teve nada”, diz.

RFI: Quando você foi para a União Soviética?

RIBEIRO: Fui para lá com seis anos de idade por causa da decisão que tomaram no Brasil de colocar, pelo menos, um terço do Comitê Central do Partido Comunista, com seus familiares, fora do Brasil devido ao agravamento da situação política no país. A partir de 1969, vários membros do partido foram para o exterior com os familiares porque havia um perigo iminente de que as famílias fossem presas para chantageá-los e obrigá-los a se entregar à polícia. Com isso, como o meu pai era o secretário-geral, resolveram que nós deveríamos partir também. Estávamos em junho de 1970. Isso ficou bem marcado na minha cabeça porque eu me lembro dos meus irmãos mais velhos assistindo a Copa de 1970 no avião. A final, entre Brasil e Itália, nós já assistimos em Moscou.

RFI: Você tem quantos irmãos ? Foram todos para a URSS?

RIBEIRO: Minha mãe, antes de conhecer o meu pai, já tinha dois filhos, Pedro e Paulo. E o meu pai já tinha a Anita, com a Olga. Depois, os dois tiveram sete filhos. No total, nós somos 10. Mas a Anita não estava conosco. Então, éramos nove.

RFI: O que você se lembra do começo da vida, de nove crianças brasileiras e os pais, de repente, na União Soviética?

RIBEIRO: O meu pai só chegou em fevereiro de 1971. Era inverno. Antes, quando ainda morávamos no Brasil, já depois do golpe, havia um esquema que nos permitia, de vez em quando, visitar o nosso pai. Como nós éramos crianças, sempre que voltávamos dessa viagem, que era muito bem organizada para evitar a polícia, para não ter nenhuma possibilidade de que o meu pai fosse preso, nós dizíamos que tínhamos ido visitar o nosso tio. Para mim, eu realmente acreditava que era o nosso tio. Eu não sabia que era o meu pai. Isso foi quando ainda morávamos em São Paulo e íamos visitá-lo na clandestinidade. Nós entrávamos num carro, mudávamos para outro, entrávamos numa galeria, saíamos pelo outro lado, dormíamos na casa de alguém. Eu não me lembro de todos os detalhes, porque eu era muito criança. Mas lembro que eram viagens cansativas. Assim evitávamos a polícia para chegar na casa onde estava morando o meu pai. Quando ele chegou a Moscou, em 1971, também foi uma aventura. Quando fiquei sabendo que ele ia chegar, eu estava doente, me lembro que estava com febre. Minha mãe foi para o aeroporto buscá-lo. Quando ele chegou e entrou no meu quarto, eu disse: “Ué, esse é o meu tio, cadê o meu pai?”. No meu imaginário, pensava que meu pai era uma outra pessoa. O que aconteceu é que nós quase não tivemos contato. Depois, lá em Moscou, sim. Nós convivíamos juntos. Mas, mesmo lá, ele vivia no escritório. Conversava conosco, saía e tal, mas, em termos de relação paterna, nós nunca tivemos muito disso. Com os netos ele foi totalmente diferente. Foi uma pessoa muito mais presente e carinhosa. Conosco, sempre foi uma pessoa muito presa, menos interativa. Era muito mais formal. Acordava de manhã e tinha uma disciplina… Nós brincávamos que ele não tinha deixado de ser militar. Dava para marcar o relógio pelos horários que saía para tomar café, almoçar, chá e jantar. Passava o dia no escritório escrevendo, lendo, se comunicando, recebendo gente lá em casa.

RFI: No tempo em que viveram na União Soviética, vocês eram crianças felizes?

RIBEIRO: Sim. No pátio, nós brincávamos com crianças como o filho do Bondarchuk (atleta olímpico ucraniano), o neto do Shostakovitch (compositor de música erudita), e vários outros garotos que não tinham pai ou mãe famosa, nem nada. Havia até filhos de alcoólatras. Tinha de tudo. Nós jogávamos futebol juntos. Como nós tínhamos acesso a alguns benefícios, nós tentávamos ganhar o que tínhamos direito para compartilhar com o nosso grupo. Tínhamos acesso a uma loja onde podíamos comprar alimentos que não existiam nas lojas comuns, um depósito oficial ao qual íamos uma vez por semana. Quando faltava algum produto, nós sabíamos que lá haveria. Um doce melhor, uma bala finlandesa, esse tipo de coisa, que só iríamos encontrar em Moscou depois das Olimpíadas. Minha mãe nos comprava essas coisas, e nós dávamos para os amigos que não tinham acesso àquilo. Isso era comum. O neto do Shostakovitch, que viajava muito, porque o avô tocava e viajava muito, trazia sempre algum brinquedo, uma coisa curiosa. Era uma forma de interagir. Ao mesmo tempo que tínhamos certos privilégios, tínhamos a consciência de que muitas pessoas não os tinham. Compartilhar, então, era normal.

RFI: Você tinha aquelas aulas de preparação para guerra na escola? Os alunos, na faculdade, ainda recebiam aquele documento dizendo que poderiam ser convocados a qualquer momento se a União Soviética entrasse em guerra?

RIBEIRO: Eu não podia servir o exército. Mas na escola tinha que seguir o currículo. Tinha aulas de “Preparo para a guerra”, que ensinava a montar uma Kalashnikov, primeiros socorros, como se comportar num caso de bombardeio, como preparar um abrigo nuclear. Tudo isso era bem normal, embora não pareça. O mais pitoresco era usar a Kalashnikov e fazer tiro ao alvo, mas isso era 1% das aulas. Ou como agir em caso explosão nuclear! Senão, tinha aulas de sociologia que eram uma verdadeira doutrinação política.

RFI: Do que você se lembra com mais detalhes?

RIBEIRO: Lembro-me de muitas coisas. Na realidade, eu sou muito mais soviético do que brasileiro. Toda a minha infância e formação se passaram lá. A minha mãe é de uma família muito humilde, pobre mesmo, do Nordeste, e queria que nós fôssemos para uma escola comum. Ela não queria uma escola da elite, ou colégio interno. Havia escolas muito boas perto de onde nós morávamos, junto com a elite. Os nossos vizinhos do prédio pertenciam à Nomenklatura (elite do Partido Comunista). Eles estudavam em uma escola da elite, e nós em um colégio comum, onde, na realidade, havia muitas crianças que moravam em apartamentos comunais (os kommunalka), onde cada quarto pertencia a uma família, sendo o banheiro e cozinha compartilhados. Eu vi muito disso na URSS. Vi filhos de heróis de guerra morando em kommunalkas. Era uma rotina bem pesada. Mas, ao mesmo tempo, a minha mãe, que vinha de uma família muito pobre, passou fome na infância, falava muito conosco sobre o que era aquela realidade da URSS para ela: ter um apartamento, ser atendida em um bom hospital. Ao mesmo tempo em que nós estudávamos numa escola muito simples, éramos atendidos pela clínica do Comitê Central, que, para os padrões da URSS, era um paraíso, que atendia a Nomenklatura, com seus tapetes vermelhos, médicos com seus jalecos brancos impecáveis. Então, nós tínhamos tanto um quanto o outro lado da moeda. Vivíamos a vida da Nomenklatura e da elite, mas tínhamos contato com as pessoas mais humildes. Nós víamos que essas pessoas, mesmo em ambientes simples, tinham acesso ao serviço social. Minha irmã teve filhos lá, e eu também. Quando nascia uma criança, depois que mãe e filho eram liberados, a enfermeira ia em casa com uma balança, pesar a criança, acompanhar a alimentação, fazer o tratamento do umbigo, o registro no banco de leite, senão era a médica que vinha, uma vez por semana, para acompanhar o desenvolvimento da criança.

RFI: Você viveu jovem, então, todo o período em que, para ter um produto da moda ou estrangeiro, tinha que recorrer ao mercado negro. Para ler um livro proibido, precisava recorrer ao “samizdat” (publicação caseira que era compartilhada). Como foram esses seus anos de juventude?

RIBEIRO: Na União Soviética, mesmo nos melhores períodos, você tinha vidas paralelas. Você tinha a vida oficial, para todo mundo ver, e aquela em que você sabia que tinha que achar um jeito ou um caminho que não era na loja, ou forma oficial, para conseguir algumas coisas que não eram permitidas ou vendidas. Como nós éramos estrangeiros e, mal ou bem, meus pais viajavam bastante. Eles traziam coisas para nós. Havia também os parentes. Uma das janelinhas era ter algum tipo de acesso ao exterior, como essa. Era a forma como conseguíamos ter discos, uma calça jeans…

RFI: Vocês também podiam trocar com amigos ou outras pessoas?

RIBEIRO: Também, claro. Nós gravávamos muito. Tínhamos aqueles gravadores dos rolos grandes. Tínhamos acesso a bombons, chicletes, que eram coisas que não existiam na URSS.

RFI: Havia algo que você quisesse muito e não podia ter?

RIBEIRO: Não lembro especificamente. Acho que um brinquedo qualquer, quando era criança. Mais velho, era mais literatura mesmo. Tinha proibição, não é? Eu não podia ter acesso a vários livros. Conseguir um livro, como o “1984” do Orwell, era muito difícil. Li um exemplar datilografado. Não tinha xerox na época. Era uma resma de papel enorme datilografo. Foi a primeira vez que li um livro assim… Acho que isso foi uma abertura, uma janela, um furacão na minha vida. Aí, eu comecei a procurar outras maneiras para ter acesso. Algumas pessoas trouxeram para mim do Brasil alguns livros, como as memórias do Leon Trotsky (que estava banido), coisas traduzidas em português. Para mim, foi muito bom, mas não servia muito para os meus amigos. Uma vez eu fiz uma carta para o Vaticano e pedi para me mandarem uma Bíblia, uma só. Eles mandaram uma caixa, que devia ter umas 50 Bíblias em russo. Saí distribuindo Bíblia na Rússia. Para consumo, até tinha aquelas coisas que nós queríamos ter e tal. Mas quando não estava à venda, nós sabíamos por quê, e não achávamos isso um problema. Nós sabíamos que era algo que, ou você tinha dinheiro para comprar, ou você pedia a alguém que pudesse trazer do exterior. Nós estávamos tão acostumados a isso que não nos incomodava tanto. A história interessante é que um cara que estudou na escola do partido, um gaúcho, que já morreu, o Leopoldo, quando teve de sair do Brasil, conseguiu levar uma jaca dentro da mala (risos), e conseguiu chegar em Moscou com ela. Ele sabia que o Gregório Bezerra (líder camponês em Pernambuco, torturado, membro do Comitê Central do Partido) gostava muito de jaca e levou para ele. O Gregório propôs comer essa jaca lá na nossa casa. O nome de guerra do Leopoldo era Luís. O Luís chegou lá em casa com aquela jaca e eu lembro que, quando ele passou da porta com aquilo, veio aquele cheiro e foi um alvoroço… Durante muito tempo da minha vida, a jaca era a fruta mais gostosa que existia.

RFI: Você nunca tinha visto uma, não é?

RIBEIRO: Não tinha a menor noção! Assisti a minha mãe limpando aquele negócio, tirando os caroços. Nós comemos, nos lambuzando. Como eu nasci no exterior, futebol, jaca, praia, carnaval eram símbolos de brasilidade. Gostar disso tudo era ser brasileiro. Quando eu cheguei no Brasil pela primeira, com 18 anos, vi que não era nada disso. A realidade era outra. Tinha gente que gostava dessas coisas e gente que não gostava. Feijoada era um prato que você podia gostar ou não. Lá em casa a minha mãe fazia, mesmo que não houvesse feijão preto na Rússia. Um amigo levava de Kiev. Carne de porco era fácil, linguiça e arroz também havia. A farofa nós substituíamos com “manko”, um tipo de fubá de trigo russo. Nós fazíamos samba, batucada em casa. Uma vez o Artur Moreira Lima comprou um conjunto de instrumentos de samba e mandou para Moscou. Reco-reco, cuíca, tudo. Nós moramos na Tverskaya, Gorkava, como se chamava na época (em homenagem ao escritor Maxim Gorki) e, no dia 9 de maio, quando, à noite, eles fechavam a avenida para a pessoas passearem (fecham até hoje), nós fazíamos um grupo de batucada…

RFI: Você tinha passaporte brasileiro ou russo?

RIBEIRO: Eu não tive passaporte até 1979. O meu passaporte brasileiro estava vencido desde 1970. Quando ele venceu, eu não tive como renovar. Mas nós podíamos viajar pelos países socialistas, Cuba, Bulgária, e outros. Eu ia com a passaporte vencido mesmo, porque precisa de uma identificação. Meu pai tinha um cubano.

RFI: Quando houve o colapso da URSS, como a sua vida mudou?

RIEIRO: Pouco antes do colapso, eu já tinha virado meio antissoviético. Mas antissoviético no sentido de ser contra o jeito que aquilo estava sendo feito na União Soviética. Eu tinha uma visão crítica, tanto na questão econômica, como na liberdade de expressão. Eu estava na faculdade, fazendo História, onde pelo menos um terço dos alunos eram declaradamente antissoviéticos. Era meio contraditório. Ao mesmo tempo nós estudávamos o Marxismo econômico, todos os aspectos do Marxismo asiático. Eram várias teorias que nós queríamos entender um pouco melhor. Por isso mesmo, nós desenvolvemos uma visão mais crítica. Nós líamos o pensamento, mas víamos que, na aplicação prática, ele havia se perdido. Daí vinha nossa crítica. Por isso, nós estávamos bem impacientes. Quando apareceu o Boris Ieltsin, com críticas ao sistema, claro que nós embarcamos nisso totalmente. A situação econômica tinha se deteriorado na União Soviética, com a queda do preço do petróleo… Eu ia para a fila comprar pão de madrugada. Ficava três horas esperando. Reclamava bastante, mas não passava fome. Havia muitas dificuldades. Você não saía para comprar, por exemplo, peixe. Você saía para comprar o que houvesse! Isso foi na década de 1980. Já 1989 e 1990 foram anos bastante complicados. Quando começou a Perestroika mesmo, parecia um terremoto na União Soviética. Tinha uma piada que explica um pouco o que estava acontecendo. Uma pessoa ligava pra outra e dizia: “Você viu o que saiu hoje no Pravda (jornal oficial do partido)?”. “Não, me conta aí”. “Não! Você está louco!”, respondia a primeira. Era uma censura interna muito grande, e a brincadeira era essa, que você não devia falar nem sobre o que estava publicado no jornal do partido. Mas aí começou a aparecer um movimento cooperativo, propriedade privada, restaurantes privados, as pessoas já podiam viajar para o exterior. Era muita coisa, muita informação ao mesmo tempo. Todo mundo naquele momento estava vivendo um sonho. “Agora vai!”, o pessoal pensava. Muitos de nós achávamos que a Rússia iria virar uma Suécia. Eu sabia que não seria assim tão fácil, ainda mais do jeito que as coisas estavam andando. A forma como foram feitas as privatizações, por exemplo, eu acho que foi um processo criminoso, uma concentração absurda… Foi o que levou à situação que a Rússia está vivendo até hoje.

RFI: No final, como foi a sua relação com Prestes?

RIBEIRO: Eu tive uma conversa muito infeliz com meu pai, mais ou menos duas semanas antes de ele falecer. Eu disse uma frase para ele, que, hoje, eu tentaria formular de uma maneira um pouco diferente: “Se isso é socialismo, eu sou contra o socialismo!”. O que eu queria formular não era isso. Eu sou a favor do socialismo, mas não do jeito burocrático como foi feito. E o meu pai tinha um compromisso com esse país, que o salvou duas vezes. Ele podia até conversar ou criticar alguma coisa, mas era uma conversa mais privada. Como eu não tinha esse compromisso, falei essa frase, e ele ficou (calado), olhando para mim. Acho que já estava naquela fase de assistir aos jovens falando. Tínhamos uma diferença de idade de 66 anos.

RFI: Hoje, você não está mais na Rússia.

RIBEIRO: Não. Vim para o Brasil. Eu abri o escritório da Apex em Moscou. Já trabalhei com tudo nessa relação do Brasil com a Rússia. Café, carne, muita coisa. Hoje, estou desempregado, buscando um emprego.

RFI: Você sente falta da Rússia ou da URSS? Ou está em outra fase e prefere ficar no Brasil?

RIBEIRO: Acho que é a fase. Gosto muito do Rio, apesar de toda essa situação que estamos vivendo hoje. Estou muito bem aqui. Saudades, não. Se tiver, eu vou lá. Pela forma de viver, acho que o cotidiano no Brasil é mais fácil do que na Rússia. Me sinto mais confortável aqui. Por outro lado, para ir ao teatro ou concerto, Moscou é bem melhor.
 

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