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Cultura/ Coreia do Norte

Livro conta horrores do regime da Coreia do Norte pelo olhar de um menino

A ditadura mais fechada do mundo pelo olhar de uma criança – essa é a proposta do livro de história em quadrinhos O Aniversário de King Jong-iI, um dos lançamentos de maior sucesso no verão francês deste ano. A obra, escrita por Aurélien Ducoudray e desenhada por Mélanie Allag, permite uma viagem ao regime da Coreia do Norte, comandada a mãos de ferro pelo mandatário. A reportagem da RFI conversou com os autores.

Em quadrinho, O Aniversário de Kim Jong-il conta como menino norte-coreano percebe toda a propaganda do regime norte-coreano.
Em quadrinho, O Aniversário de Kim Jong-il conta como menino norte-coreano percebe toda a propaganda do regime norte-coreano. Mirages/Delcourt
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O romance gráfico de vocês fala sobre uma das piores ditaduras do século 21, a Coreia do Norte. Por que o personagem principal é um menino de 8 anos?

Ducoudray: Queríamos um ponto de vista ingênuo sobre a questão. A propaganda na Coreia do Norte é extremamente enquadrada, muito eficiente, mas tem também um lado visualmente ingênuo. King Jong-iI diz que o seu povo é um povo de crianças, por isso é preciso falar como se fossem crianças. Essa nos pareceu ser a melhor maneira de falar do regime.

Vocês contam a intensidade desse país por todas as suas graduações: ela passa dos quadrinhos coloridos, nos primeiros anos, ao preto e branco. A história também é mostrada pela cor?

Allag: Sim, era importante marcarmos uma ruptura na história no momento em que o universo do menino desmorona. Fiz muitas pesquisas sobre a decoração norte-coreana e vi que muitos prédios têm cores pastéis, rosa, amarelo, verde… É como se o regime quisesse criar um clima de bem-estar, de parque de diversões, de uma vida muito feliz. Nos quadrinhos, usamos essa ferramenta para ir subindo a intensidade, até o momento em que tudo se despedaça e os personagens vão parar num campo de trabalhos forçados. Neste momento, o universo do menino afunda no horror.

O garoto se chama Juan Sang e se torna líder da Juventude Patriótica do seu bairro. É um bom soldadinho formatado pelo regime?

Ducoudray: Como o menino nasceu no mesmo dia que o ditador Kim Jong-iI, ao se tornar líder no seu bairro ele tem a impressão de também ter poder. Mas ele logo percebe que o verdadeiro líder é muito mais importante do que ele próprio, ou qualquer outra pessoa. Kim Jong-iI é uma pessoa a quem atribui-se poderes quase sobrenaturais, divinos. Ele faz parte de uma linhagem familiar sagrada. Ele não caminhou sobre as águas, não multiplicou os pães nem transformou a água em vinho, mas para os norte-coreanos, não estamos longe disso, quando se trata de Kim Jong-iI. É um respeito quase religioso.

Allag: Colocamos o retrato do líder em todos os lugares, na escola do menino, em qualquer hall de entrada. Ele é onipresente, principalmente na primeira parte da história, e até no campo de concentração. O menino sente como se tivesse um olhar que lhe segue por todos os lados, até nos seus sonhos. Kim quase vira o seu amigo imaginário.

Capa do livro de Aurélien Ducoudray e Mélanie Allag.
Capa do livro de Aurélien Ducoudray e Mélanie Allag. Crédits: Delcourt

Há um fio condutor no livro: a fome, que está presente o tempo todo.

Ducoudray: Sim, porque para escrevê-lo, eu li os testemunhos de norte-coreanos que conseguiram escapar. A cada vez, em cada relato, havia uma parte sobre a fome dos anos 1990. Tem relatos horríveis de se ler, mas depois, quando pensamos melhor, chegamos à conclusão de que há muita inteligência também. Por exemplo, há uma passagem na qual todo mundo começa a caçar ratos porque não tem mais nada para comer. Um garoto diz: “achei um! Vamos matá-lo“. E o outro fala: “Não, você não pode matá-lo. Um rato sempre tem uma segunda casa, e na segunda casa há comida, trigo. Se o matarmos, não encontraremos essa segunda casa, mas se o deixarmos vivo, comeremos o rato e o trigo”. É como se fosse uma energia que surge das situações mais catastróficas.

Nós acompanhamos o personagem por oito anos. Os pais dele tentam fugir e a história acaba mal, vira uma epopeia. Mas, no fim, esse pequeno líder da Juventude Patriótica se torna um contraproduto do regime?

Ducoudray: Era tudo tão mentiroso que, no dia em que caiu a ficha, ele precisava reagir de uma maneira completamente oposta. Por isso, há uma parte em que ele se torna quase um pivete. Não vou contar o fim do livro, mas ele compreende o que há por trás de tanta propaganda e, no seu mundinho, tenta lutar contra isso. O que é mais irônico é que o que o ajuda é sua confiança absoluta em Kim Jong-iI, até mesmo nas piores situações. Quando ele está no campo, ele pensa: “se eu estou aqui, é porque tem uma razão. Kim Jong-iI não pode estar errado por ter me trazido para cá”.

Isso é algo muito comum nos relatos de norte-coreanos que conseguiram fugir e hoje vivem na Coreia do Sul, mas de certa forma continuam na Coreia do Norte. De alguma maneira, eles continuam a não gostar do regime, mas funcionam sob os ensinamentos dados por ele. Eles não conseguem se adaptar à Coreia do Sul e entram em uma depressão bastante violenta. Lembro-me do relato de uma senhora que disse que a cada aniversário de Kim Jong-iI, ela chorava.
 

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