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Violência

Estupro: o que a Índia pode ensinar ao Brasil

“Theek hai” (Tudo bem), foi a gota d’água para as mulheres na Índia. Essas palavras foram ditas pelo ex-primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, se referindo ao estupro coletivo de 2012 que levou à morte da jovem chamada pelo pseudônimo “Nirbhaya” (destemida). Outros políticos, como o presidente do congresso, Botsa Satyanarayana, disseram que o crime foi “um pequeno incidente” e que mulheres não deveriam sair muito tarde à noite.

Protesto contra estupro de uma estudante em Mumbai, no dia 11 de maio.
Protesto contra estupro de uma estudante em Mumbai, no dia 11 de maio. REUTERS/Shailesh Andrade
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Colaboração de Sarah Bazin

Essas atitudes levaram a população indiana às ruas pedindo justiça para “Nirbhaya” e uma mudança nas leis de direitos das mulheres. No mesmo ano, o movimento feminista levou ao governo um manifesto que ficou conhecido como “Womanifest”, em que reivindicavam às autoridades que agissem de acordo com seus compromissos e obrigações perante as mulheres.

Diferente do Brasil, até 2013, a Índia tinha apenas uma definição de estupro. A partir do manifesto, foi criada uma emenda à lei existente que introduziu 16 formas diferentes, não unicamente a penetração genital masculina, aumentou a idade para sexo consensual de 16 para 18 anos e deu a possibilidade de provar o ato de estupro por testemunhas e não apenas por laudos médicos. Apesar de nem todos estarem de acordo, a pressão popular surtiu um efeito forte na classe política.

“O que foi feito foi o mínimo necessário...”

A mudança foi grande. Desde 1983 um ato de estupro não teve tanta atenção, e nesse caso levou à condenação dos seis culpados (inclusive à pena de morte). Mas, para Uruvashi Butalia, escritora feminista e uma das primeiras signatárias do manifesto, ainda existe um grande caminho pela frente. “O que foi feito foi o mínimo necessário para uma mudança na sociedade”, disse.

Para ela, os políticos perceberam o quão importante é o voto feminino. Em algumas regiões da Índia mulheres chegam a 50% da população apta a votar, e em eleições regionais isso faz bastante diferença. Butalia diz que “é difícil esperar grande mudança quando se tem um governo de direita no poder, mas desde 2012 viu se um crescimento da consciência popular quando se trata de casos de estupro, mas não se pode esperar que um governo como esse, de direita, seja complacente com os direitos das mulheres”.

Cultura do estupro

Assim como está acontecendo agora no Brasil, na Índia também houveram discursos que tentavam colocar a culpa do crime na menina estuprada e morta. A cultura do estupro é demasiadamente presente, os discursos oficiais, como visto na fala do primeiro ministro, provam isto. Porém, na Índia, a pressão popular foi tão grande que acabou impossível para a classe política abafar o caso.

Para Nikita Sud, professora de políticas e desenvolvimento da Índia na Universidade de Oxford, o caso de “Nirbhaya” revitalizou o discurso sobre estupro no país. “A mídia passou a dar mais atenção a crimes de estupro e teve um pico de reportagens sobre violência contra a mulher, e isso deu coragem a muitas mulheres de denunciar abusos, não apenas estupros mas também assédios e cantadas”, disse.

“Por motivos de vergonha e pelo sentimento de que as autoridades não fossem dar atenção aos seus casos, grande parte delas não iam prestar queixas. Com esse episódio isso mudou e muito: mais mulheres vão prestar depoimentos”, completa Sud.

“Pervertidos de Mumbai”

Há apenas algumas semanas, duas mulheres de Bombay criaram uma página no Facebook chamada “Tharkis of Bombay” (“Pervertidos de Mombai”, em tradução livre). Com o mesmo espírito da página “Humans of New York” (“Pessoas de Nova York”, em tradução livre) elas postam fotos de homens que não param de encará-las na rua.

Ashwamy, 27 anos, e Ria, 26 anos, buscam pelas redes sociais atrair a atenção da população para o que ocorre às mulheres no dia-a-dia, e tentam ver se conseguem, quem sabe, mudar a atitude dos homens. As fotos captam o momento do olhar insistente dos homens, e vêm com um texto descrevendo a situação pela qual elas passaram. Em entrevista à RFI, Ashwamy diz que elas só tiram fotos de pessoas que olham realmente insistentemente. Ela diz que a média de tempo é de cinco a dez minutos.

“O objetivo é fazer eles mudarem o comportamento; quando a gente pede para pararem de olhar, na maioria das vezes eles não respondem e continuam a encarar, então decidimos passar a tirar fotos deles, mas mesmo assim, normalmente, eles nem piscam”, disse. Até agora apenas as duas postam as fotos na página, pois têm medo que se outras pessoas fizerem também o projeto saia do controle e poderia afetar pessoas que não necessariamente estejam erradas. Em duas semanas a página já tem mais de mil seguidores.

O importante é continuar a protestar

Esse é um exemplo de atitudes que estão surgindo na Índia, porém, para Butalia, é uma mudança que aparece nos grandes centros urbanos. “Não temos como dizer se ela também está chegando nas pequenas comunidades do interior, mas ter começado alguma mudança já é um desenvolvimento positivo.” disse.

Ainda segundo Butalia, o importante é que as mulheres não saiam das ruas e continuem a protestar. Ainda existem muitas cláusulas que precisam ser acrescentadas à lei indiana em relação ao estupro. “Os grupos feministas querem que as vítimas de estupro sejam ‘pessoas neutras’, ou seja, não apenas mulheres; a lei precisa incluir estupros de homens, transgêneros, crianças e não apenas mulheres”, disse.

Apesar das mudanças na lei, estupros ainda são muito comuns na Índia, assim como no Brasil. Para Nikita Sud o estupro é o exercício do poder (independente do gênero) “não é a forma como você se veste, caminha e por onde anda que vai te salvar de um ato parecido”, disse. “Mas é, sim, preciso reivindicar para si a noite, as ruas, e viver a vida da forma como a mulher achar melhor; essa é a forma de responder aos atos ‘de poder’, precisamos ser nós mesmas”.

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