Quantos milhões de migrantes a Europa pode digerir sem perigosas convulsões internas?
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Foi preciso uma fotografia trágica – o pequeno Aylan morto numa praia turca – para que as populações e os governos da Europa admitissem que o problema dos refugiados e imigrantes não vai desaparecer tão cedo. Fazem meses que milhares de homens, mulheres e crianças morrem afogadas nas águas do Mediterrâneo tentando alcançar a Europa. Só que ninguém se mexia seriamente. Só uma imensa emoção coletiva pôde obrigar políticos e governos a tomar decisões difíceis.
O insuportável destino fotografado de Aylan mudou o panorama. E os milhares de refugiados sírios marchando a pé para a fronteira austríaca, sem que as tropas de choque do governo húngaro tivessem condições morais para impedi-los, foi a gota d’água.
Só há um verdadeiro homem de Estado na Europa: Angela Merkel. A chanceler alemã mudou o jogo declarando que a Alemanha está disposta a acolher 800.000 refugiados, começando pelos que estavam atravessando o território húngaro – 20.000 pessoas em dois dias. Berlim também apóia a proposta visando a obrigar cada país da União a aceitar uma percentagem de requerentes de asilo. Uma atitude corajosa – nessa Europa às turras com movimentos xenófobos e racistas – que obrigou os chefes de Estado vizinhos a reagirem. Começando pela França que até então tinha feito corpo mole para cumprir o seu dever humanitário e que agora também declarou que vai integrar mais de 20.000 refugiados.
Fenômeno pode piorar
Na verdade, todos tomaram consciência de que o êxodo de pessoas fugindo guerras, governos ditatoriais, situações econômicas catastróficas e ameaças climáticas é um fenômeno mundial e que só pode piorar. No mundo há quase 60 milhões de pessoas deslocadas, quase todas vivendo em verdadeiros campos de concentração nos países do Sul e a mercê de traficantes sem escrúpulos. Não adianta fechar os olhos que a dor não vai passar. Está na hora de enfrentar o problema. Senão vai levar de roldão todos os valores e a estabilidade não só dos países pobres expostos aos fluxos migratórios, mas também a própria Europa. Encarar esse desafio é uma questão de vida ou morte para as instituições e a paz europeias.
Por enquanto, na onda da emoção humanitária, a idéia é respeitar a lei internacional e acolher todas as pessoas que entram na categoria de “refugiados políticos”. E portanto separar os refugiados dos emigrantes por motivos econômicos. Sírios, eritreus, iraquianos serão aceitos, a maioria dos africanos não. Ou melhor: para os emigrantes econômicos, Merkel já anunciou um sistema de quotas em função das vagas de trabalho que precisam ser preenchidas no país. Essa solução é meio humanitária, meio interessada: a Alemanha e outros países europeus estão precisando de jovens trabalhadores estrangeiros para manter o crescimento econômico e o financiamento dos generosos sistemas sociais do Velho Continente. Só que isso tem limites. Até quantas centenas, ou milhões, de prófugos a Europa pode digerir sem perigosas convulsões internas?
Intervenções militares, políticas e econômicas
Portanto não haverá solução sustentável se os problemas na origem das migrações de massa não forem tratados diretamente. Ninguém abandona a sua terra e se arrisca morrer no caminho do exílio por gosto, mas porque não tem outro remédio. É a guerra na Síria que criou os 4 milhões de refugiados sírios. É urgente encontrar uma maneira de resolver o conflito e reconstruir o país para que todos possam retornar viver em casa. Idem para o Iraque, o Afeganistão ou a Eritreia. Não vai ser mais possível tolerar ditaduras africanas corruptas, que impedem o desenvolvimento de seus próprios países, obrigando milhões de pessoas a fugir e se exilar.
Todas as soluções passam pelo restabelecimento da paz e pela construção de governos responsáveis e legítimos capazes de garantir os modelos econômicos necessários para promover uma vida digna para as populações. Só que isso quer dizer intervenções pesadas – militares, políticas e econômicas – no caos dos países “falidos”. Quem está disposto e quem decide? Deverão ser criados “protetorados internacionais” administrados pela ONU? Claro, ninguém quer por em causa a sacrossanta soberania dos Estados. Mas alguma coisa vai ter que ser feita com um Estado soberano cuja política tornou-se uma ameaça direta para os vizinhos e até para a paz no mundo.
Alfredo Valladão , do Instituto de Estudos Políticos de Paris, faz uma crônica para a RFI às terças-feiras
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