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Fato em Foco

Militarização de escolas goianas pode ferir constituição

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No último dia 24 de junho, o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), encaminhou um projeto de lei alarmante para a Assembleia Legislativa do Estado. O texto, enviado em caráter de urgência, estabelecia um teto de 30 dias para que a Secretaria de Educação, Cultura e Esporte (Seduce) e o Comando-Geral da Polícia Militar entrassem em um acordo para transferir a gestão de oito escolas públicas para as mãos dos militares. Menos de dois meses depois, quase 30 escolas estão sob o comando da PM. Uma medida que, de acordo com o professor da USP José Sérgio de Carvalho, fere a Constituição.

Alunos da Colégio Militar Waldock Frick Lyra (à esq.), no estado do Amazonas, que é administrada pela Polícia Federal
Alunos da Colégio Militar Waldock Frick Lyra (à esq.), no estado do Amazonas, que é administrada pela Polícia Federal SEDUC/Amazonas
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O principal argumento de Marconi Perillo para militarizar as escolas públicas foi que o desempenho dos colégios militares era superior ao dos outros colégios. Mas, na prática, os primeiros estabelecimentos afetados pela medida foram justamente aqueles cujos professores haviam aderido a uma greve na primeira metade do ano para exigir, entre outras coisas, o pagamento do piso salarial.

Para Bia de Lima, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Educação do Estado, a escolha das escolas não foi, nem de longe, fortuita. Ela denuncia que "a primeira coisa que os militares fazem é questionar se esse professor é filiado ou não ao sindicato". Se a resposta é sim, "ele já não pode ser professor dessa escola".

"Olha o absurdo a que chegamos!", protesta a professora. "Não me venha dizer que essa escola é democrática. Nem na época da ditadura militar nós tínhamos isso!" Além dessa "retaliação" e desse ataque deliberado ao direito de "organização e mobilização da consciência crítica dos professores", Bia explica que as escolas transferidas para os militares têm boas estruturas, boa localização.

"Eu pego as escolas com melhor infra-estrutura, eu seleciono os alunos, eu seleciono os professores, eu garanto gratificação diferenciada, garanto gratificação especial para os militares e aí me vem o pessoal querer comparar as demais escolas públicas com essa?", questiona Bia de Lima. "Por que não garantir a mesma estrutura física para as demais escolas? Nós temos aqui em Goiânia escolas de placa. Pergunta se o governador deu escola de placa pros militares. E outra: cada militar que vai para lá recebe uma gratificação de mais de R$ 2 mil. E os professores da rede normal, não", acusa.

Desescolarizar a escola

Não há dados que relacionem diretamente a militarização à melhora dos resultados. Mas, ainda que essa ligação pudesse ser comprovada, a militarização contraria a essência da escola, como explica o pedagogo e professor de Filosofia da Educação José Sérgio de Carvalho, da USP. "A forma escolar é típica de algumas sociedades. Todas as sociedades têm mecanismos sociais de educação. Entre nações indígenas brasileiras, a educação é feita por impregnação. Ou seja, sem que haja um momento de separação da vida, como a escola, para que a aprendizagem ocorra".

O professor lembra que a palavra escola deriva do grego scholē, que quer dizer "tempo livre, ócio, um tempo em que você está liberado, em que as coisas não são como na vida". Por isso, "trazer a polícia militar, que pertence a um determinado âmbito da vida, que é da repressão, da coerção etc., para dentro do ambiente escolar significa desescolarizar a escola. E aí, não importam os resultados".

O pedagogo afirma que, na educação, a forma está em questão. "A dignidade do aluno, a necessidade que o aluno tem de uma disciplina para o estudo e não para a obediência. A rejeição a esa solução militar tem que ser visceral porque ela significa retirar das instituições escolares o seu compromisso com os valores republicanos, com os valores da democracia por um suposto valor, sequer provado, do rendimento escolar."

Modelo elitista

E o que quer dizer o rendimento escolar? A capacidade de passar no vestibular? Se a ideia é essa, Carvalho observa que a solução é simples, não depende de nada além de um sistema exclusivista: basta estabelecer um ensino médio tão difícil quanto o exame vestibular e deixar que só os fortes sobrevivam. Um processo elitista, baseado em uma pseudo-meritocracia e que priorizaria a capacidade de adequação sobre capacidade de pensar.

Mas, elitista por elitista, o modelo militarista goiano já o é. Bia diz que muitos alunos pertencem à classe média alta, já que apenas o fardamento custa cerca de R$ 350, que vêm acrescidos de outras taxas, como inscrição e material. São "aqueles pais que não estão dando conta de pagar uma escola privada, mas querem seu filho numa escola no centro de Goiânia, não nas periferias".

Naturalizar a desigualdade

Com as fardas, vêm as patentes. Os alunos das escolas militares são condecorados de maneira análoga aos postos do exército: dividem-se em sargentos, tenentes, coronéis. Esse processo, na opinião de José Sérgio de Carvalho, naturaliza a desigualdade. Ele observa que a escola nunca foi capaz de produzir a igualdade econômica, mas sim de criar um "ideal do cultivo da igualdade como um valor".

"A igualdade não é um fato, ela é uma conquista política. O reforço de qualquer prática escolar que hierarquiza os alunos significa a tentativa de preparação que naturaliza a desigualdade como um dado. O que significou a invenção da política e da democracia entre os gregos? A invenção da igualdade. Claro que todos sabiam que alguns eram mais eloquentes, outros, menos; uns mais ricos, outros, menos etc. Mas o próprio sentido da democracia é equalizar aquilo que é diferente", analisa.

O professor diz que a política ocorre "toda vez que eu afirmo essa igualdade entre os cidadãos dentro do espaço público: o direito à opinião, liberdade de escolhas políticas, religiosas, sexuais". Para ele, a afirmação dessa igualdade é incompatível com uma escola que naturaliza a hierarquia de acordo com supostos dons meritocráricos.

Além disso, a gestão democrática do ensino público está prevista no sexto parágrafo do terceiro capítulo da Constituição de 1988. A rígida hierarquia militar não prevê - e nem pode prever - a crítica e a reavaliação constantes. Imagine um soldado que resolve compreender as bases filosóficas de uma ordem de retirada, por exemplo? É bem provável que não viverá para ouvir a resposta de seu comandante. Mas o princípio da obediência simplesmente não cabe em um ambiente de construção de conhecimento.

Carvalho observa que a militarização "fere os valores impressos na Constituição". Isso porque a gestão democrática do ensino público está inscrita no sexto parágrafo do terceiro capítulo da Constituição de 1988. Quer dizer, a militarização abre um precedente de descumprimento de premissas constitucionais.

"Ao fazer isso (militarizar), o governador se coloca contra a lei maior, o princípio da constituição. É gravíssimo. Estamos ferindo o preceito constitucional", ao substituir o espaço da democracia, em que a palavra se sobrepõe à violência, pela lógica da coerção.

Banalidade do mal

E a lógica da repressão, da obediência como um princípio e da autoridade pela autoridade rendeu uma profusão de exemplos históricos catastróficos. José Sérgio de Carvalho, que é especialista na filósofa judia alemã Hannah Arendt, tem um dos mais sinistros na ponta da língua. É o caso do clássico julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, que se tornou o melhor exemplo do que Arendt chamou de "banalidade do mal", em um famoso artigo para a revista New Yorker.

O ex-oficial da SS (a principal força policial de Adolf Hitler) não apresentava qualquer distúrbio mental, nem era particularmente antissemita, mas não teve qualquer problema em organizar a logística da execução de centenas de milhares de judeus nos campos de extermínio nazistas. Isso porque ele se via como um burocrata, que não fazia mais do que obedecer a ordens de superiores.

Eichmann representa o extremo da obediência cega. Mas não é difícil achar o embrião dessa lógica em um sistema escolar que impõe a autoridade pela coerção e substitui a crítica pela disciplina. "Não me parece que a função da escola seja a produção em série de Adolf Eichmanns." Se for, caminhamos para uma catástrofe de proporções históricas.

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