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Mandela/África do Sul

Com a morte de Mandela, o mundo perde uma 'unanimidade da paz'

Muito mais do que um prêmio Nobel ou um grande articulador político, morreu nesta quinta-feira, 5 de dezembro de 2013, uma "unanimidade da paz", como bem definiu a deputada federal brasileira Benedita da Silva. Personalidades (políticas ou não) de todos os espectros ideológicos reconhecem que Nelson Mandela foi um dos mais hábeis, se não o mais hábil, conciliador do século XX. Para o ex-presidente Luíz Inácio Lula da Silva, "o cara" para Obama, "o cara" é Mandela. E, de sua vida digna de ao menos três longas de ficção e incontáveis documentários, ele operou ao menos dois milagres: resistir aos horrores de 27 anos de prisão sem nunca abrir mão de suas convicções e, o mais difícil, perdoar o algoz ao reconquistar a liberdade.

O ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, em 24 de junho de 2008
O ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, em 24 de junho de 2008 REUTERS/Dylan Martinez/Files
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Em 11 de fevereiro de 1990, o mundo inteiro viu ao vivo o ex-prisioneiro propagar seu compromisso com a paz e a reconciliação com a minoria branca. Humanista, mas sem perder o realismo de vista: naquele primeiro discurso, ao lado da mulher Winnie, Mandela descartou a dissolução do braço armado do Congresso Nacional Africano (CNA) enquanto o povo negro, que constitui cerca de 70% da África do Sul, não encontrasse tranquilidade em seu próprio território. Diante disso, houve quem imaginasse que Mandela poderia se aproveitar de sua posição de prestígio e liderança internacional para conduzir uma retaliação interna.

Não foi o caso, nem quando saiu da prisão nem quando se tornou o primeiro presidente negro do país, em 10 de maio de 1994. Pelo contrário, a reconciliação nacional foi a grande preocupação de seu governo, a ser conquistada "por quaisquer meios necessários", como diria Malcolm X, outro nacionalista negro que Nelson Mandela admirava muito. Seu compromisso em enterrar o apartheid na lata de lixo da história foi tamanho, que ele chegou oferecer anistia em troca de verdade. A Comissão de Verdade e Reconciliação, dirigida pelo bispo Desmond Tutu, ouviu durante dois anos todos os tipos de abusos aos direitos humanos, tanto da parte dos antigos líderes do apartheid, quanto de membros do CNA. E não houve caça às bruxas. Inclusive, antigos membros do Executivo receberam cargos na administração Mandela.

Nelson Mandela também não transpareceu o incômodo de ter que dividir o Prêmio Nobel da paz de 1993 com o último presidente do regime, Frederik Willem de Klerk. De acordo com a organização norueguesa, os dois mereceram por seu "trabalho pelo término pacífico do apartheid e por ter estabelecido as bases de uma nova África do Sul democrática". O primeiro lutou a vida inteira sem abandonar seus ideais mesmo sob as condições mais adversas; o outro assumiu a presidência interina de um regime decadente, depois que seu antecessor sofreu um derrame. E se viu diante de um cenário político internacional em que o sistema não cabia mais - principalmente por conta da queda do bloco socialista.

Mandela sequer seguiu a cartilha de outros ex-revolucionários africanos que, uma vez no poder, nunca mais largaram o osso. Depois de um único mandato, Nelson Mandela passou a faixa para outro membro do CNA, Thabo Mbeki, em 14 de junho de 1999. Como disse George Nelson Preston, curador do Museum of Arts and Origins, de Nova York: Mandela "atravessou o campo inteiro e passou a bola. Ela está no nosso pé, agora".

Luta armada

"Você está se casando com um prisioneiro", brincou sério o pai de Winifred Zanyiwe Madikizela no discurso do casamento da filha com o advogado e membro da executiva do Congresso Nacional Africano, Nelson Mandela. Além dele próprio, Mandela defendia outros 144 ativistas anti-apartheid, em um julgamento por "alta traição", cujo resultado seria uma provável condenação. Não seria a primeira; muito menos a mais severa.

Sua firma, Mandela and Tambo, era o único escritório gerido por negros que existia no país e, portanto, concentrava todas as mazelas jurídicas da população não-branca. A própria Winifred conheceu o futuro marido numa consulta. Dali para ela virar a famosa ativista Winnie Mandela não demorou muito. Mas o fato é que, mal começara seu segundo casamento, Madiba (nome de seu clã, que acabou virando apelido) foi condenado a um ano de prisão, teve de lidar com a proibição do CNA e ainda se adaptar à vida na clandestinidade.

Dois anos antes, em 1953, ele já havia desistido da postura de resistência pacífica, ao concluir que somente a luta armada revolucionária poderia reverter o sistema segregacionista estabelecido pelo Partido Nacional da extrema-direita branca, então no poder. Pelas regras da cartilha estabelecida em 1949 e chamada Apartheid (termo africâner para "separação"), negros não podiam votar nem fazer parte do governo, não tinham direito à livre circulação e deveriam portar um passe a cada vez que circulassem por uma área reservada aos brancos. A ausência do documento poderia implicar deportação sumária. Por área branca, leia-se: todas as terras produtivas, todas as capitais e todos os centros comerciais. Tudo era segregado, dos trens e ônibus às escolas, faculdades, hospitais, ambulâncias e até o sexo. O amor entre pessoas de cores diferentes era reprimido pela força da lei.

Os impostos eram segregados: o de renda, por exemplo, era aplicado à maioria das faixas salariais dos negros (mais pobres), enquanto só incidia sobre o cume da pirâmide social branca. E para quem não estivesse satisfeito, a resposta era bala, como ficou claro na repressão às revoltas estudantis do gueto negro de Soweto. Indignados com a obrigatoriedade do africâner, língua de matriz holandesa, em todas as matérias escolares, os alunos de várias escolas primárias entraram em greve. A repressão da polícia causou a morte de 176 pessoas, de acordo com as estatísticas oficiais. Pelas não oficiais, a contagem de corpos ultrapassa os 700.

Diante de um cenário social, econômico e político como este, pode-se dizer que a demora de quatro anos entre a instituição do apartheid e a opção de Nelson Mandela pela luta armada já era uma demonstração precoce da lendária paciência do líder sul-africano. Mas, apesar de seu redirecionamento ideológico, foi somente em 1961 que Mandela estabeleceu seu grupo guerrilheiro. A princípio, o Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação, ou simplesmente MK), que ele fundou ao lado de Walter Sisulu e Joe Slovo, era um grupo autônomo. Mas não demorou para que ele virasse o braço armado do CNA. A ideia do grupo era muita pressão e poucas mortes. Durante a noite, eles bombardeariam estruturas militares, centrais energéticas, linhas de transporte. Se a estratégia falhasse, o MK passaria ao terrorismo e à guerrilha urbana.

As armas, evidentemente restritas à população branca, viriam de uma turnê lobista pelo norte da África que Mandela faria em janeiro de 1962 por ocasião de uma reunião do Movimento Panafricanista da Liberdade para o Leste, Centro e Sul da África, que aconteceria em Addis Abeba. Viajando disfarçado, Mandela conseguiu armas, dinheiro e fez dois meses de treinamento de guerrilha na Etiópia, antes de ser convocado de volta para seu país. Mal chegou, Mandela foi novamente preso, em 5 de agosto de 62, sob a acusação de incitar greves e deixar o país sem permissão.

Mas, desta vez, ao invés de usar suas habilidades de advogado para se defender, ele resolveu transformar a corte num palanque político. Apareceu vestido em roupa tradicional, não convocou nenhuma testemunha e, inspirado por Fidel Castro que, anos antes havia proferido o célebre discurso "A história me absolverá" no tribunal de Santiago de Cuba, discursou ao invés de se defender. Como escreveria na autobiografia "Um Longo Caminho para a Liberdade", publicada em 1994, foi ali que ele percebeu "o papel que poderia desempenhar na corte". "Eu era um símbolo de justiça na corte do opressor, o representante dos grandes ideais de liberdade, justiça e democracia, em uma sociedade que despreza essas virtudes. Percebi naquele momento que eu poderia continuar a lutar mesmo dentro da fortaleza do inimigo".

Sob o coro de "Nkosi Sikeleli Afrika" - canto negro que se tornaria hino nacional após a queda do apartheid - de manifestantes dentro e fora do tribunal, Mandela ouviu sua sentença de cinco anos. Mas o pior ainda estava por vir: uma batida policial na fazenda Liliesleaf, que servia de base de operações para o MK, revelou o envolvimento de Nelson Mandela com planos de sabotagem. Em novo julgamento, ele assumiu a responsabilidade, embora tenha negado conspirar para promover a guerrilha urbana. Mas o júri foi implacável: prisão perpétua.

Persistência

"Quando as pessoas são presas, especialmente em países como a África do Sul, ninguém nunca mais ouve falar nelas", observa David Hinds, vocalista da banda britânica Steel Pulse. Compositor de faixas como "Free the land", "We can do it", "State of Emergency", "Biko's Kindred Lament", todas músicas de protesto pelo fim do apartheid, Hinds admira Mandela por ter se mantido firme a seus ideais, mesmo "sem saber onde isso ia dar".

Deu em 27 anos de cadeia. Dezoito deles, sob torturas físicas e psicológicas, confinado em uma cela de 2,1m x 2,4m, da qual saía praticamente só para executar trabalhos forçados. Uma visita e uma carta a cada seis meses eram o máximo permitido - e a correspondência de Mandela dificilmente cruzava a censura. Jornais eram proibidos e o "porte" de notícias era passível de confinamento na solitária. Mandela resistia estudando para formar-se bacharel em direito e discutindo política e sociedade com companheiros de cárcere como Walter Sisulu e Gavo Mbeki. Nessa mesma época, ele começou a escrever "Longo caminho para a liberdade".

Até o final dos anos 70, Nelson Mandela ficou quase esquecido na prisão de Robben Island, até seu 60° aniversário, em 78. Começou então uma campanha internacional pela sua liberdade e até o Conselho de Segurança da ONU chegou a clamar "Free Mandela", slogan da campanha. Poucos países se opuseram: os Estados Unidos de Ronald Reagan e a Inglaterra de Margaret Thatcher entre eles.

Com esses aliados de peso, o regime suportou a pressão e simplesmente transferiu o Madiba para a prisão Pollsmoor, em 1982, junto com outras lideranças do CNA. Para o governo, foram vários coelhos em uma cajadada só: além de aliviar a pressão externa que crescia conforme surgiam notícias das péssimas condições de Robben Island, os velhos líderes foram isolados de prisioneiros políticos mais jovens.

O segundo objetivo até funcionou, mas a comunidade internacional já estava seduzida pela força de Mandela. O influxo de investimentos, principalmente bancários, começou a minguar. A ultraliberal Margareth Thatcher foi pedir ao presidente P.W. Botha para liberar "o terrorista" e evitar a quebra da economia. Botha topou e ofereceu a Mandela a liberdade em troca da renúncia eterna à luta armada. Ele preferiu ficar preso.

Mas, de fato, as condições tiveram melhora relativa. Mandela pode reestabelecer sua rotina de correspondências e pegar firme na leitura. No entanto, foi na cela úmida e pouco arejada de Pollsmoor que o líder negro desenvolveu a tuberculose que danificaria seu pulmão permanemente. Um embrião da infecção que o mataria.

Na época, porém, a doença acabou sendo o passaporte para sua última transferência carcerária, rumo à prisão domiciliar Victor Verster. Entre 88 e 90, ele conseguiu concluir o bacharelado e estabelecer comunicações clandestinas com o líder exilado do CNA Oliver Tambo. Botha, por sua vez, sofreu um derrame e teve de ser substituído por F.W. de Klerk. Logo que caiu o muro de Berlim, o novo presidente percebeu que o apartheid era insustentável e assinou a libertação incondicional de Nelson Mandela, depois de 27 anos e nenhuma concessão ao regime.

Cárcere pop

"O erro que os africâners cometeram ao aprisionar Nelson Mandela por tanto tempo foi o seguinte: apesar de eles conseguirem reprimir diversas revoltas e manifestações com violência, o fato de eles terem mantido uma pessoa isolada em um lugar por tanto tempo criou uma concentração de enorme significado simbólico", opina George Preston. De fato, a crueza da condenação a Nelson Mandela despertou a atenção da comunidade internacional.

"Free Nelson Mandela" virou um slogan conhecido no planeta inteiro. Virou música, nos acordes de Jerry Dammers, da banda britânica de ska The Specials. Virou cover, com Elvis Costello e até Amy Winehouse, que cantou sua versão num festival em comemoração ao 90° aniversário de Mandela. Impulsionado pelo drama do carismático líder sul-africano, movimentos e manifestações culturais anti-apartheid pipocaram pelo mundo. Em 1979, Bob Marley proclamava em um concerto na Universidade de Harvard "se a África não se libertar, ninguém será livre". Toda a renda do show foi revertida para o CNA.

Mais de 20 anos depois, ao lado de Peter Gabriel, Ladysmith Black Mambazo, Alex Brown, Sinéad o' Connor e Geoffrey Oriema, Manu Dibango gravou a faixa "Biko", em homenagem ao ativista radical anti-apartheid Steve Biko, . Biko ressuscitou em "Um grito de liberdade", com Denzel Washington no papel do protagonista. Se formos falar em filmes sobre Mandela, aliás, falta espaço. Morgan Freeman viveu o líder já à frente do Executivo sul-africano em "Invictus", que retrata uma das mais astutas - e polêmicas - jogadas políticas de Mandela: encorajar os negros do país a apoiar a equipe nacional de rúgbi durante a Copa do Mundo da modalidade, que aconteceu na África do Sul. Durante o apartheid, o rúgbi era o esporte dos brancos; a população negra amava o futebol.

Em "Mandela - Luta pela Liberdade", foi Dennis Haysbert (que fez David Palmer, em "24 horas") quem viveu as amarguras do período de cárcere. No festival de Cannes deste ano, foi apresentado o pôster da adaptação cinematográfica da autobiografia "Longo caminho para a liberdade", em fase de produção. Previsto para janeiro de 2014, o longa assinado por Justin Chadwick traz o britânico Idris Elba (o Stringer Bell, da série "The Wire") no papel de Mandela.

Legado

Agora que se foi o homem, sobrevive o mito, pela arte, pela memória de todos os humanistas e panafricanistas do mundo. Será que teremos outro Nelson Mandela para atravessar o campo e passar a bola? David Hinds acha pouco provável: "A luta agora também é diferente. Aquela era uma época em que um porta-voz conduzia a libertação das massas; agora, são as massas que vão precisar libertar as massas, como aconteceu no Oriente Médio. Os dias de Malcolm X, Martin Luther King, Stokely Carmichael, Mahatma Ghandi, Nelson Mandela, em que uma pessoa assumia a liderança das lutas de libertação, acabaram. Agora, você precisa assumir a sua responsabilidade e eu preciso assumir a minha, para trabalharmos coletivamente pela nossa libertação e nossa emancipação física e mental".

Benedita da Silva também acredita que nos resta o espírito coletivista. "Nelson Mandela é Martin Luther King, mas é também Winnie Mandela, é Dandara. É Desmond Tutu, é aqueles que lutam pela liberdade nas prisões, aqueles que lutam pela justiça. E Mandela é também o presidente de todos nós: da África e da diáspora".

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