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Notre-Dame

Monumentos podem ser reconstruídos sem perder autenticidade?

O incêndio da Catedral de Notre-Dame de Paris, na última segunda-feira (15), reabriu o antigo debate sobre a validade de reconstrução de monumentos. A reparação de edifícios milenares, como é o caso da célebre igreja parisiense parcialmente consumida pelas chamas, pode interferir em sua autenticidade e em seu valor? A RFI conversou com especialistas no assunto.

Catedral Notre-Dame de Paris foi parcialmente destruída por um incêndio na segunda-feira (15).
Catedral Notre-Dame de Paris foi parcialmente destruída por um incêndio na segunda-feira (15). REUTERS/Benoit Tessier
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Não há consenso sobre a questão da autenticidade de monumentos reconstruídos entre arquitetos, restauradores e historiadores. Para muitos deles, essa característica é extremamente relativa, já que uma construção é constantemente modificada e reparada ao longo dos anos, especialmente no caso de monumentos centenários, como é o caso da Catedral de Notre-Dame de Paris.

“Acredito que é possível dar à catedral a silhueta que é conhecida no mundo inteiro, mas, tecnicamente, não com os mesmos materiais. O valor e o sentido da igreja podem sim ser recuperados. Por outro lado, em termos de autenticidade, é complicado de avaliar, já que a Notre-Dame já foi muito restaurada, reconstruída, modificada. Ou seja, a autenticidade da construção original da Idade Média já é muito relativa”, avalia Julien Bastoen, professor associado da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Paris-Belleville.

A Conferência de Nara, realizada no Japão, em 1994, reuniu especialistas do mundo inteiro e se concentrou em dissecar o conceito de autenticidade para a Convenção do Patrimônio Mundial. Segundo João Carlos Nara Jr., arquiteto e urbanista da Coordenação de Preservação de Imóveis Tombados do Escritório Técnico da UFRJ, no evento foi definido que o principal fator de atribuição de valor é a autenticidade. “Mas ela, em si, não é um valor. A autenticidade é interpretada de diversas formas por especialistas e é difícil utilizá-la”, ressalta.

A historiadora Christina Cameron, pesquisadora do Patrimônio Construído da Universidade do Canadá, lembra que, há alguns anos, o conceito da autenticidade era relacionado aos materiais da construção dos monumentos. “Após uma reflexão internacional, houve uma expansão dessa ideia para chegarmos à conclusão que, mesmo se utilizarmos um material diferente do original, podemos ainda assim manter a autenticidade do espírito do monumento”, afirma.

Caso por caso

Os especialistas são unânimes em afirmar que a necessidade de reconstrução dos monumentos deve ser avaliada caso a caso. “Não há uma estratégia global que se aplicaria a todos os monumentos”, aponta Bastoen.

O professor de arquitetura lembra que os japoneses, por exemplo, têm uma tradição de reconstrução em prol da manutenção ou reparação. “O que interessa, para eles, é mais a técnica de reconstituição idêntica do que a originalidade do material”, aponta.

É o caso do Templo do Pavilhão Dourado ou Kinkaku-ji, na cidade de Kyoto. O monumento original foi construído em 1397, mas reconstruído depois de ser queimado na Guerra de Onin, entre 1467 e 1477. Em 1950, um monge que sofria de problemas mentais o incendiou e o templo foi reerguido em 1955. Patrimônio Mundial da Unesco, o local é um dos mais visitados do Japão.

Casos contrários, em que monumentos destruídos não são jamais reparados de forma intencional também são célebres. Na Europa, muitas construções, como a igreja Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche ou Igreja da Memória, parcialmente destruída por bombardeios da Segunda Guerra, nunca foi reconstruída, mas foi transformada em um memorial do conflito. Ao seu lado, foi erguida uma igreja moderna.

No entanto, Bastoen ressalta que o contexto histórico da Igreja da Memória é diferente do incêndio da Notre-Dame, resultado de um acidente. “A dimensão memorial da Kaiser-Wilhelm-Gedächtniskirche é muito mais forte porque ela se tornou um símbolo da barbárie, sofrimento e do martírio de Berlim, que quase desapareceu durante a guerra. Em Notre Dame, a destruição foi puramente acidental, sem intenção. Por isso não faz sentido não reconstruí-la”, observa.

Em outros casos, como o Museu Nacional do Rio de Janeiro, a reconstrução é impossível, já que a grande perda com o incêndio que atingiu o local em setembro de 2018 está principalmente relacionada com o desaparecimento do acervo, irreversível.

Valor de Notre-Dame permanece intacto

Os três especialistas entrevistados pela RFI concordam que a importância da catedral, que atravessou séculos de História, não será afetada pelo incêndio que a destruiu parcialmente, mesmo que em sua reconstrução sejam utilizados materiais modernos.

“A ruína conta a história do edifício, que também tem vida útil e não pode durar para sempre. É natural que um prédio feneça. A melhor forma de manter um edifício é fazer com que seu uso se mantenha. Então, se Notre-Dame é uma igreja, funcionava como tal e pode continuar funcionando, deve sem dúvidas ser reconstruída”, afirma Nara Jr.

O arquiteto e urbanista não acredita que a igreja vá perder autenticidade. “É a catedral de Paris e vai voltar a ter a função que sempre teve. Algumas obras foram perdidas, mas o que é uma obra de arte perto da história da humanidade? Esse incêndio vai ser mais uma cicatriz nas batalhas da vida da Notre-Dame”, avalia.

Já a historiadora Christina Cameron acredita que um grande debate sobre a reconstrução da Notre-Dame deve ser realizado na França. “O principal agora é que os especialistas avaliem o que pode ser feito. Jamais deixariam em ruínas uma catedral que está na ativa”, observa.

A pesquisadora canadense lembra que o valor patrimonial da Notre-Dame é imenso, não apenas para os católicos, mas para a identidade francesa e o turismo. A igreja atraiu, no ano passado, 14 milhões de visitantes. “A importância da Notre-Dame vai além das fronteiras da França. Ela pertence a todos nós, que é, aliás, o conceito de Patrimônio Mundial da Humanidade. Todos nós seríamos prejudicados se ela desaparecesse”, reitera.

Bastoen é ainda mais otimista. Para ele, o incêndio na Notre-Dame podem ajudar a reforçar a importância da catedral. “Esse monumento tem uma carga sentimental tão grande que eu acredito que esse acidente terrível pode aumentar esse capital simbólico não apenas para a nação francesa, mas para o mundo inteiro.”

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