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Livro vencedor do prestigiado prêmio Goncourt aborda juventude perdida de região pobre da França

Num canto perdido da França, longe do glamour cinza de Paris ou das mansões com vista para o mar da Côte d’Azûr, quatro adolescentes crescem rodeados pelo desemprego, pela incerteza e pelo tédio de uma juventude que sonha em estar em outro lugar. Recheado de diversas menções aos anos 1990 na França, que culminou com a vitória da Copa do Mundo de 1998, o romance do escritor Nicolas Mathieu, ainda pouco conhecido no país, foi o vencedor do prêmio Goncourt 2018, o mais reputado da literatura francesa, anunciado nesta quarta-feira (7).

Nicolas Mathieu com seu livro "Leurs enfants après eux" na mão
Nicolas Mathieu com seu livro "Leurs enfants après eux" na mão © Reuters
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“Leurs enfants après eux” (“Depois deles, seus filhos”, em tradução livre) é costurado em quatro verões vividos por seus personagens adolescentes, Anthony, Hacine, Steph e Clém. Cada etapa da existência dos personagens foi batizada segundo uma canção de sucesso da época: Smells like teen spirit, do Nirvana, You could be mine, de Guns ‘N Roses, La Fiévre, do grupo francês de rap Suprême NTM e, finalmente, I wil survive, da cantora Gloria Gaynor. Essa última, ligada ao meio gay nos Estados Unidos e no Brasil, na França foi apropriada pela equipe vencedora da Copa de 1998.

A escrita ácida e dura da realidade desses jovens de um meio pobre, com poucas oportunidades e muitos sonhos – dos quais o maior é partir de onde nasceram – agradou o júri. Há mesmo quem diga que a originalidade criativa ao unir literatura e música funcionou como um piscar de olhos para Virginie Despentes, uma das juradas do Goncourt e autora de romances no estilo do “sexo, drogas e rock 'n’ roll”.

“Ele não vestia nada, com exceção de um velho short de futebol e óculos Ray-Ban falsos. Fazia um calor de matar, mas isso não explicava tudo. Anthony acabava de fazer 14 anos. Para o café da tarde, ele engolia uma baguete inteira cheia de ‘Vache qui Rit’. À noite, ele às vezes escrevia canções, com os fones de ouvido. Seus pais eram idiotas”, escreve Nicolas Mathieu no primeiro capítulo de seu premiado livro.

A crueza da descrição não somente dos cenários, mas da personalidade e das emoções dos personagens, fica evidente em pequenos detalhes, como na referência à marca de queijo “Vache qui Rit” (“Vaca que ri”, em português), popular entre os franceses de classes menos favorecidas. “Anthony retirou um cigarro do maço guardado em seu short e perguntou a seu primo se ele também, às vezes, não se entediava ao extremo”, continua Mathieu.

Cidades desfavorecidas na França: terreno fértil para a literatura

A dureza do texto de Nicolas Mathieu ao descrever essas adolescências que vagam por cidades desfavorecidas da França não é novidade na literatura francesa – e parece receita de sucesso. Em 2014, o jovem Édouard Louis emergia na cena literária com seu O fim de Eddy, vencedor de prêmios e provocador de polêmicas.

Em sua obra, Édouard Louis retraça com uma delicada violência textual as diversas agressões – sociais, emocionais, físicas – que sofreu em sua cidade e em sua casa quando criança. Seu único desejo, como os personagens de Nicolas Mathieu, era fugir. Sua única saída, também como o autor de Leurs enfants après eux, foi a literatura. Eddy gerou questionamentos a respeito da forma como seu autor retratava “os pobres” da França, mas permanece sendo um importante retrato das complexidades do mundo capitalista atual e das divergências de classe no país. Édouard Louis era um “transclasse” – não havia nenhuma identificação com o corpo social no qual ele havia nascido.

Mas antes dele, em 2009, o sociólogo Didier Eribon já havia percorrido o mesmo caminho duas vezes: o de partir do lugar de agressão e o de voltar. Retours à Reims (“Retorno a Reims”, em tradução livre) é uma mistura de literatura e pesquisa científica social, onde o autor revisita sua cidade natal e seus fantasmas, abandonados mas nunca esquecidos, ligados à origem social humilde.

“O Goncourt é como uma loteria: podemos sonhar, mas não podemos contar com a vitória”

Hoje com 40 anos, Nicolas Mathieu revela que sentiu desde criança que a literatura o tiraria de sua cidade natal, Épinal, do nordeste da França. “Eu via homens mais bem vestidos, com tênis mais bonitos, e que voltavam bronzeados das férias de verão... e, por acaso, eram sempre os mesmos a seduzir as melhores garotas”, contou à revista francesa Télérama. “Eu sonhava em viver em outro lugar. Eu lia muito. Comprei uma máquina de escrever quando tinha 7 ou 8 anos e me lembro perfeitamente do dia em que minha professora leu meu texto diante de toda a sala. Na verdade, eu me disse desde pequeno que a escrita poderia ser um meio de escapar de onde eu estava”, diz o autor.

Mathieu afirma que, antes de chegar à lista de indicados, nunca tinha sonhado em vencer o prestigiado prêmio, como explicou à radio France Bleu. “Eu nunca comprei um livro só por causa do Goncourt. Mas quando meu livro ganhou destaque, as pessoas vinham me parabenizar, me dizer ‘Boa sorte’. Acabamos entrando no jogo. Honestamente, é como ganhar na loteria, podemos sonhar, mas não podemos contar com a vitória”.

O percurso, entretanto, não foi fácil: Mathieu teve que aceitar trabalhos fora de sua área e, durante um certo período, acordava às 5h da manhã para ter duas horas de produção criativa antes de partir para seu emprego na Prefeitura de Paris. “Levei quatro anos para escrever [o primeiro livro, Aux animaux la guerre]. Minha mulher estava grávida e eu sabia que, se não terminasse antes do nascimento de meu filho, entraria num longo túnel sem poder escrever. Então produzi como um louco. (...) Em seguida, fiz um burn-out. Acreditei realmente que não escreveria nunca mais. E depois o romance foi comprado pela Europacorp”, disse ao jornal Libération.

Para o escritor, o processo criativo não chega a ser uma terapia. Mas, ainda assim, é uma forma de “vingança” contra as dificuldades da vida. “Apanhamos demais o tempo todo e escrever é uma maneira de revidar os socos. Sou uma pessoa irritada em geral e é isso que coloca as engrenagens em funcionamento. Sinto raiva do estado das coisas. Tudo me afeta. A escritura está na união de diversos fatores: as frustações, uma vontade de mudar o mundo, a emancipação... tudo se converge, no fim”, concluiu Mathieu.

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