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Saúde em dia

França: terapia em prisão "cura" criminosos sexuais

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A médica francesa Magali Bodon-Bruzel é chefe do setor de psiquiatria da penitenciária de Fresnes, na região parisiense, onde estão detidos condenados por crimes graves. Psicopatas, estupradores e pedófilos, mas também suas vítimas, fazem parte do cotidiano da especialista, que ensina a esses agressores, depois de libertados, a controlar seus impulsos. Ela detalha essa experiência em seu livro “Sex Crimes”, lançado recentemente na França.

Magali Bodon-Bruzel, chefe do serviço de psiquiatria da prisão de Fresnes, na região parisiense
Magali Bodon-Bruzel, chefe do serviço de psiquiatria da prisão de Fresnes, na região parisiense (Foto: Taissa Stivanin/RFI)
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Se você acredita que mesmo o pior dos homens, que cometeu atos imperdoáveis, deveria, na melhor das hipóteses, passar o resto da vida na cadeia ou ser afastado definitivamente da sociedade, é melhor parar de ler esse texto. Na França, na maior parte dos casos, todos têm uma segunda oportunidade de voltar a viver normalmente, depois de cumprirem suas penas. Isso mesmo em caso de estupros, abuso sexual em crianças ou outros crimes ignóbeis. Globalmente, o sistema aposta na reinserção social.

Baseando-se nessa premissa, a psiquiatra Magali Bodon-Bruzel, que há 20 anos atua na prisão de segurança máxima de Fresnes, na região parisiense, desenvolveu um método para ajudar predadores sexuais a se controlarem depois de libertados – em geral, o encarceramento, sem homicídio, não ultrapassa dez anos.

Nas terapias coletivas, que existem há uma década, a especialista faz com que os criminosos aprendam a decodificar suas emoções, sentimentos e evitar situações que os levem a cometer novos crimes. A tomada de consciência da gravidade do ato e a empatia pela vítima são os dois elementos essenciais no caminho da “cura”, descreve a psiquiatra. Em alguns casos mais graves, explica, uma castração química temporária associada à psicoterapia é necessária.

Os resultados são positivos, embora o risco de uma recaída nunca possa ser definitivamente descartado. Um dos casos mais emblemáticos citados no livro é o de um jovem que estuprou 21 mulheres e teve “alta” da equipe médica, depois de um longo trabalho de psicoterapia. Ele está livre há vários anos e não cometeu outros delitos que tenham chegado ao conhecimento da polícia. A psiquiatra francesa concedeu essa entrevista exclusiva à RFI Brasil e falou sobre sua visão em relação aos criminosos e seus crimes.

RFI – Quem são esses criminosos?

São pessoas que vêm por vontade própria se isolar em um dos pavilhões da prisão, onde existem 12 celas individuais, reservadas aos presos que aceitam o tratamento e participar da terapia durante seis meses, em grupo.

RFI – Como é o tratamento?

Vários psiquiatras participam do programa, além de dois psicólogos. Um psiquiatra é responsável pelo tratamento individual. Também há três enfermeiras especializadas. O trabalho é diário e cada terapeuta tem um papel específico. O psicólogo criminal, por exemplo, trabalha na prevenção da reincidência: como identificar o encadeamento de fatores que levam ao delito, e como interromper essa reação em cadeia. A ideia é ajudar os agressores a parar no momento em que eles percebem que suas ações vão conduzi-los ao crime. No meu caso, tenho grupos de educação terapêutica, onde trabalhamos a emoção e a gestão das emoções, além da questão do vício, que frequentemente está presente nesses crimes. Trabalhamos também a impulsividade e as chamadas “distorções cognitivas”: são crenças permissivas, que surgem a partir de histórias inventadas para si mesmo pelo próprio agressor para legitimar e justificar certos atos. Por exemplo: “a vítima não dirá nada”, ou “ela ou ele estão gostando”, ou “é só de vez em quando”, ou ainda “ele não vai se lembrar, ainda é muito pequeno”. Em seis meses, abordamos todo tipo de elemento que leva os criminosos a cometerem esses atos. Queremos que eles percebam e desenvolvam estratégias para evitar o crime. Paralelamente, seus problemas pessoais serão abordados e poderão dar um sentido ao que aconteceu, como a imagem da mãe e a representação feminina ou das crianças, além de sua própria infância. Muitas vezes, ele mesmo foi vítima.

RFI – Existe uma estatística sobre quantos dos presos que seguiram o tratamento cometeram novos crimes?

Não podemos prever se o condenado vai reincidir ou não. Só tendo uma bola de cristal. Sendo cientista, temos uma gestão do risco, se ele ainda existe, diminuiu ou é idêntico. Um risco é uma percentagem. Mesmo que exista 80% de risco de recaída, sempre podemos cair nos 10% restantes. E importante compreender isso. E uma maneira moderna de avaliar o risco de recidiva. Quais são os resultados? Tentamos identificar diferenças entre o antes e o depois do tratamento. Aplicamos testes sobre o nível de empatia, depressão, autoconfiança. De uma maneira geral, os pacientes estão menos deprimidos, exceto pedófilos que não cometeram incesto, com pelo menos uma vítima masculina. Em relação à recidiva, é impossível prever, porque os pacientes não ficam em Fresnes e não acompanhamos sua ficha policial. Para ter certeza dos resultados, precisaríamos aplicar a mesma terapia em pessoas que não cometeram crimes e avaliar a diferença. É impossível de realizar, mas estamos avaliando.

RFI - O caso da menina Angélique, estuprada e assassinada por um predador sexual que trabalhava como motorista de ônibus em uma pequena cidade onde ninguém conhecia seu passado, chocou a França. Esse passado deve se manter anônimo, na sua opinião, depois que o criminoso cumpriu a pena? Não é muito arriscado?

É preciso entender que muitas pessoas cometem delitos e crimes. Muitas são encarceradas, outras não, e quase todas saem da prisão. O sistema é assim. Todas essas pessoas, incluindo os criminosos sexuais, depois de liberados, têm um acompanhamento. Será que temos que informar as pessoas próximas sobre o crime cometido e o passado judiciário? Não tenho opinião. Não faz parte da cultura francesa. Temos que comparar também as taxas de reincidência. Elas são menores nos crimes sexuais se comparamos às de outros crimes.

RFI - Um caso é especialmente intrigante em seu livro, o de um jovem que estuprou 21 mulheres, hoje está livre e vive normalmente. Como é possível?

Não é surpreendente. Do ponto de vista do sensacional, jornalístico, apresentamos um personagem e, a partir daí, a pessoa só tem essa faceta. Alguém que estupra 21 pessoas é um monstro, ponto final. Clinicamente, e isso é que torna meu trabalho e o da minha equipe apaixonante, é constatar que as coisas não são tão simples assim. Em um determinado período, a pessoa pode estar muito mal. Esse é um caso que eu tentei destrinchar. Era alguém inteligente, e percebi que uma parte dele era capaz dessa alteridade, dessa negação da violência, que ficou reprimida diante de uma história pessoal dramática. Ele tomou consciência de seus atos e mudou depois da terapia. Nesse caso, o próprio juiz encarregado da aplicação de penas me solicitou para uma perícia psiquiátrica, dizendo ter a impressão de que esse jovem tinha melhorado muito e o acompanhamento poderia ser diminuído. Confirmei sua impressão, de que o risco de recidiva era muito baixo. Eu o vi há alguns anos e não tive mais notícias.

RFI – Em um trecho livro você diz que, em certas ocasiões, se “conformou em aceitar o mistério do mal”…

A grande maioria das pessoas que cometeram esses atos não são doentes mentais, não são loucos. Tenho tendência a acreditar que uma parte dessa pessoa, mesmo ínfima, é acessível à humanidade. Que uma parte, ainda que pequena, tem compaixão, empatia. Que não é todo o ser dela que está mobilizado em um ato que visa destruir o outro e negar a alteridade. Mas já encontrei pessoas nas quais o respeito e a consideração pelo outro são inexistentes. Pelo menos no momento em que eu as examinei. Esses pacientes parecem estar inteiramente mergulhados em sua subjetividade.

RFI - Esse mal se refere, então, a psicopatas?

Sim, e esse é todo o mistério da psicopatia. Como é possível ignorar o sofrimento alheio dessa forma? Ignorar esse sofrimento em alguns momentos, ou colocar essa questão de lado, isso pode acontecer, e é isso que trabalhamos com a maioria dos detentos.

RFI - No Brasil, os criminosos sexuais são atacados prisão, vítimas de estupro e morte. Esse “código de honra” existe nas prisões francesas?

Isso continua, embora aconteça menos do que antes. Há cerca de dez anos, os criminosos sexuais, chamados de “pointeur” (sinônimo de estuprador) na linguagem dos detentos, eram perseguidos pelos outros prisioneiros, agredidos, estuprados. Isso continua. Um pai ou avô que cometeu incesto, quando chega na prisão, não tem o perfil de um detento. Rapidamente eles percebem que se trata de um agressor sexual e não de um delinquente. Os carcereiros aconselham a não contar para ninguém na prisão a razão da detenção. Essas perseguições continuam.

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