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Imigração

Delito de solidariedade: quando ajudar migrantes pode ser crime na França

Você sabia que na França o apoio aos migrantes pode ser um crime, previsto por lei? Desde o início da crise migratória, multiplicam-se os casos em que cidadãos franceses são processados, correndo o risco até de serem presos, por terem ajudado estrangeiros em situação ilegal no país.  

O presidente francês, Emmanuel Macron, conversa com um migrante sudanês no centro de acolhimento de Croisilles, no norte da França.
O presidente francês, Emmanuel Macron, conversa com um migrante sudanês no centro de acolhimento de Croisilles, no norte da França. REUTERS/Michel Spingler
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Delito de solidariedade: a irônica expressão, criada em 1995 pelo Grupo de Informação e Apoio aos Imigrantes (Gisti), não existe juridicamente. Mas ela faz referência ao artigo L622-1 do código de entrada, da permanência dos estrangeiros e do direito de asilo, que data de 1945.

O texto estabelece que toda a pessoa que ajuda, de maneira direta ou indireta, um estrangeiro a entrar, circular ou permanecer de forma ilegal na França pode ser condenado a cinco anos de prisão e a pagar € 30 mil de multa. O objetivo inicial da medida era lutar contra as redes clandestinas e o tráfico de pessoas, mas ela vem servindo recentemente para reprimir cidadãos e membros de ONGS que prestam assistência aos migrantes.

Agricultor acolheu mais de 250 migrantes

Um dos casos mais emblemáticos do “delito de solidariedade” é o do agricultor francês Cédric Herrou, de 38 anos, morador da cidade de Breil-sur-Roya, na fronteira da França com a Itália. Ele acolheu, hospedou e alimentou mais de 250 migrantes africanos, 90% deles fugindo da guerra.

Herrou já foi condenado e está atualmente recorrendo da decisão, sendo inclusive proibido pela Justiça de deixar o território francês. Por este motivo, não participa nesta segunda-feira (30) da Marcha Cidadã e Solidária, que começa na cidade de Ventimiglia, na Itália, e deve atravessar a França inteira até Calais, norte do país, de onde os migrantes tentam atravessar o Canal da Mancha para chegar ao Reino Unido.

O agricultor, que transformou sua solidariedade em combate, conversou com a RFI. Segundo Herrou, não há dúvidas que o gerenciamento da crise dos migrantes pelo governo demonstra um “racismo de Estado”, uma situação que, para ele, remete ao Holocausto. "Quando era pequeno e estudei a Segunda Guerra Mundial, eu me perguntava: como pudemos fazer essas coisas, prender e assassinar os judeus? Para mim, era impensável que os Estados agissem desta forma. Daqui a alguns anos, teremos vergonha do que estamos fazendo hoje com os migrantes”, diz.

Para ele, o tratamento dos migrantes na França destaca uma política de dois pesos, duas medidas do governo. “Temos uma nação que representa os Direitos Humanos, mas são direitos feitos por homens brancos, para homens brancos. As pessoas que chegam à França vindas da África e do Oriente Médio não são consideradas por esses Direitos Humanos. Se eu contatasse o serviço de imigração da França dizendo que encontrei na fronteira com a Itália uma moça loira perdida, falando uma língua estrangeira, talvez seja dinamarquesa ou sueca, tenho certeza de que as autoridades se mobilizariam na hora por ela", ironiza.

O agricultor francês Cédric Herrou.
O agricultor francês Cédric Herrou. AFP

Cinco anos de prisão por ter ajudado dois garotos de 15 anos

Martine Landry, de 73 anos, observadora da ONG Anistia Internacional, que atua na fronteira da França com a Itália, também corre o risco de ser presa e ter que desembolsar € 30 mil. O motivo, segundo a Justiça, é ter “facilitado a entrada no território francês de dois estrangeiros menores em situação irregular”.

O caso, envolvendo dois meninos de 15 anos originários da Guiné, data de julho de 2017. Landry nega ter desrespeitado a lei ao orientá-los. “Não os ajudei a cruzar a fronteira, nem a permanecer ilegalmente na França. Eles já estavam em território francês. Como observadora da Anistia Internacional, apenas os conduzi à polícia da fronteira e pedi, como estabelece a lei, que o serviço social à infância fosse acionado. E foi o que aconteceu”, diz, em entrevista à RFI.

Para ela, o delito de solidariedade é uma tentativa dos governos de intimidar as pessoas que ajudam os migrantes em um ato humanitário. A militante também utiliza a midiatização de seu caso para denunciar descumprimento da lei de imigração na fronteira, onde, segundo ela, irregularidades são frequentes. “Quase nunca os migrantes têm acesso a seus direitos nas fronteiras. Além disso, menores nunca podem estar em situação irregular na fronteira, porque a lei obriga que eles sejam sempre protegidos em qualquer lugar onde estejam. Por isso não temo esse processo contra mim e espero que justiça seja feita”, salienta.

Martine Landry, de 73 anos, observadora da ONG Anistia Internacional.
Martine Landry, de 73 anos, observadora da ONG Anistia Internacional. Valery HACHE / AFP

Projeto de lei revisa delito de solidariedade

Depois de vários dias de intensos debates, o novo projeto de lei sobre asilo e imigração foi aprovado em 22 de abril em primeira leitura pela Assembleia francesa. Uma das questões que dividiu os deputados de esquerda e direita foi o controverso delito de solidariedade.

Sob pressão dos parlamentares progressistas e ONGs, o texto foi revisto, na tentativa de, segundo os deputados, com uma emenda, somente penalizar os traficantes de pessoas e quem quiser lucrar financeiramente com a ajuda a migrantes. Mas, para Lola Schumann, encarregada de Defesa dos Migrantes da Anistia Internacional, a modificação insere novos termos que deixam a lei à mercê de interpretações diversas.  

“O texto é dúbio e impreciso. No próprio momento do voto, alguns deputados acharam que o delito de solidariedade havia sido revogado e chegaram a comemorar. Ou seja, nem eles conseguem interpretar o que votaram. Por isso, teremos que ser muito vigilantes na aplicação deste novo texto”, preconiza.

Muito além do delito de solidariedade, para Schumann, o projeto de lei é “perigoso”, especialmente no que diz respeito à diminuição do período para o pedido de asilo, de 120 a 90 dias, a facilitação das expulsões de estrangeiros da França e até mesmo da retenção de menores de idade. “Para nós, a possibilidade de aceder ao conjunto de direitos que têm os migrantes ficou ainda mais comprometida neste texto”, reitera.

Já para Violaine Carrère, jurista do Grupo de Informação e Apoio aos Imigrantes (Gisti), o projeto de lei não vai resolver o problema da imigração na França, nem vai deixar de penalizar quem atualmente já está sendo processado pelo delito de solidariedade. Para esses acusados, a lei antiga continuará valendo. “As coisas só vão mudar quando os parlamentares revogarem completamente esse artigo ou quando modificarem verdadeiramente seu conteúdo”, salienta.

Para Carrère, uma das características mais graves relacionadas ao projeto de lei é a maneira como ele é apresentado para a opinião pública. “O governo diz que é um texto equilibrado, destinado a favorecer os estrangeiros, mas, quando o lemos atentivamente, nos damos conta de que ele está dentro da lógica de tratar cada vez pior e mais rápido possível os casos de pedido de asilo para expulsar as pessoas de maneira definitiva da França”, alerta.

O projeto de lei asilo e imigração depende agora da aprovação do Senado. O governo do presidente Emmanuel Macron espera adotar a nova lei ainda neste primeiro semestre.

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