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Feminismo

"Não é vendo Carmem matar Don José que viramos mais feministas”, diz professora da Sorbonne

Será que vale tudo no mundo das artes contra o assédio sexual e a violência feita às mulheres? Depois da polêmica sobre o manifesto assinado no jornal Le Monde por 100 personalidades francesas (entre elas, a atriz Catherine Deneuve) contra a “censura” e o “puritanismo”, a bola da vez na França é a discussão em torno da mudança do final trágico da ópera clássica Carmem, de Bizet. A RFI Brasil conversou com Josette Féral, professora de Teoria do Teatro na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, sobre a controversa montagem de Carmem, além de novas e velhas polêmicas contemporâneas entre feminismo e arte.

Na montagem italiana do clássico de Bizet, que causou polêmica em janeiro de 2018, é Carmem quem mata seu algoz.
Na montagem italiana do clássico de Bizet, que causou polêmica em janeiro de 2018, é Carmem quem mata seu algoz. © Teatro del Maggio, Florença
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A polêmica, que chegou a ser chamada de Carmengate na França, começou quando o diretor da Ópera de Florença, na Itália, Cristiano Chiarot, fez um pedido especial ao diretor Leo Muscato, responsável pela montagem da famosa Carmem, que estreou em plena polêmica no último dia 4 de janeiro: revisitar o final trágico do libreto de Georges Bizet. Até então, mesmo com algumas alterações feitas por alguns diretores contemporâneos, a história previa a morte da cigana Carmem, assassinada por seu amante Don José. Na montagem italiana, é Carmem quem mata seu algoz.

Segundo crítica publicada na edição desta terça-feira (15) no jornal Le Monde, a ideia era “não subscrever a violência feita às mulheres, provocando aplausos após a morte de uma delas”, uma ideia que foi encampada até pelo prefeito de Florença, Dario Nardella, em tempos pós-escândalo hollywoodiano de Harvey Weinstein, e o tsunami de denúncias despertadas na sequência. A jornalista Marie-Aude Fox, que assina o texto no jornal francês, acredita, no entanto, como diz seu título, que “Salvar Carmem é um contrassenso” e que “em salvando a heroína de Bizet, a Ópera de Florença acreditar apoiar as mulheres, mas acaba matando a tragédia”.

A importância da liberação da palavra: política X estética?

“Tenho uma opinião dividida sobre esta montagem de Carmem. De um lado, o público que vai assistir a ópera não vai especialmente em busca de uma imagem social. Eles não estão lá para ouvir que Carmem se liberou e atira em seu amante. Não vejo a necessidade de mudar o fim do libreto original. Isto dito, se alguns diretores – e houve muitos que o fizeram, como Olivier Py [diretor do célebre Festival de Teatro de Avignon, na França] – decidem defendê-lo, isso não me incomoda em nada. É absolutamente normal que um diretor tenha a liberdade de mudar uma obra. Estes clássicos foram montados centenas de milhares de vezes, acredito que Carmem seja uma das óperas mais montadas em todo o mundo”, expõe Féral.

“É claro que isso vai desagradar algumas pessoas. [O diretor norte-americano] Peter Sellars fez isso muitas vezes e sempre foi muito impactante, magnífico. Mas, sinceramente, eu não acho que seja útil modificar o fim de Carmem porque estamos num momento de liberação. Mas, se o fazemos, não é grave do ponto de vista estético. Mas que não o façamos apenas por uma necessidade política, mas comprometidos com um objetivo artístico”, pondera.

“Não vamos à ópera para termos um modelo [de comportamento]. Não se deve também fazer com que todas as formas artísticas encampem o mesmo combate. Há um combate artístico e um político. A ópera é um modelo muito enraizado no século 19. Podemos modificá-lo como Sellars fez com Don Giovanni [de Mozart], que ele coloca em cena no underground do Bronx, em Nova York, com um protagonista que se droga no meio de garrafas de champanhe. Não há nenhum problema com isso”.

O que mantém a arte viva

“O sentido que Bizet deu ao libreto original de Carmem nos pertence hoje, podemos modificá-lo”. Isso pertence ao presente, não ao passado, não podemos continuar adormecidos respeitando literalmente as obras. É isso que mantém a arte viva. Mas não devemos interferir sistematicamente nelas com um objetivo político. As obras de arte não são um modelo. Não é porque vemos Carmem matar Don José que vamos nos tornar mulheres mais feministas”, afirma Josette Féral.

“Há 30 ou 40 anos, as mulheres derrubaram barreiras importantes [com o movimento feminista]. Mas o que constatamos é que, mesmo se alguns limites foram transpostos, outras estruturas limitadoras foram criadas. Na intimidade de sua vida sexual, a mulher não é tão livre como em sua vida social. Não apenas não somos livres, como uma maioria de homens enraizou neles esta impressão de que a dominação [sobre o outro sexo] lhes pertence”, analisa Josette Féral, professora de Teoria do Teatro na Universidade Sorbonne Nouvelle, em Paris, que participou de coletivos feministas franceses da década de 1960.

“O que dá força ao movimento feminista é a palavra. Enquanto cada mulher está sozinha no seu canto, ela vive seu drama em sua intimidade e ela não ousa falar disso. O que diferencia os tempos atuais é talvez uma certa transparência que acontece por meio da liberação da palavra, que faz com que uma mulher não esteja sozinha, por isso essa discussão ganha peso”, finaliza a professora, membro do LIRA, Laboratório Internacional de Pesquisa em Artes da Sorbonne.

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