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“Che Guevara continua a incomodar 50 anos depois de sua morte”, diz biógrafo em Paris

De criança asmática e semi-moribunda a um dos principais líderes da Revolução Cubana. Leitor insaciável de Goëthe e Baudelaire, mas também atleta, inventor e médico oncologista pesquisador de plantas amazônicas. Mais do que el Comandante, o argentino Che Guevara construiu em seus poucos 39 anos de vida uma trajetória meteórica, num jogo de espelhos fascinante entre seus vários personagens. A exposição Le Che à Paris, em cartaz na Prefeitura de Paris, recupera sua estreita ligação com a capital francesa. A RFI Brasil conversou com o curador da mostra, Jean Cormier, biógrafo de Guevara, autor do livro “Che Guevara, tempo de revelações” pela Éditions du Rocher, lançado em outubro de 2017. 

A exposição Le Che à Paris fica em cartaz na prefeitura da capital francesa até 20 de fevereiro de 2018
A exposição Le Che à Paris fica em cartaz na prefeitura da capital francesa até 20 de fevereiro de 2018 RFI/Márcia Bechara
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Em Paris, ele cumpria um ritual específico: descer a pé a longa avenida de Champs Elysées até o Museu do Louvre para passar longas horas em frente ao quadro “A Nau dos Loucos”, de Jérôme Bosch. O motivo dessa excursão simbólica de Ernesto Che Guevara, quando na capital francesa, remonta a um ancestral do poeta revolucionário. Felipe Guevara, nobre de Flandres, defendeu [com sucesso] o célebre pintor do século 15 das acusações de “satanista” por parte da Inquisição.

Quadro "A nau dos Loucos", de Jérôme Bosch.
Quadro "A nau dos Loucos", de Jérôme Bosch. RFI/Márcia Bechara

Quem conta essa história com um sorriso é seu principal biógrafo, o francês Jean Cormier, em entrevista à RFI Brasil, no escritório de seu apartamento povoado de carrancas, chifres, fotos, livros e outros objetos insólitos, verdadeira jungle semiótica no elegante boulevardde Saint-Michel. É a partir da ideia da pintura “A Nau dos Loucos” que Cormier, junto com a Prefeitura de Paris, organizou a mostra gratuita Le Che à Paris, em comemoração aos 90 anos de seu nascimento e aos 50 anos de sua morte, em cartaz no hall do famoso Hotel de Ville (sede da municipalidade parisiense).

Réplica de "La Poderosa II", a motocicleta Norton 500 que acompanhou Ernesto Che Guevara em seu giro pela América Latina, em 1952.
Réplica de "La Poderosa II", a motocicleta Norton 500 que acompanhou Ernesto Che Guevara em seu giro pela América Latina, em 1952. RFI/Márcia Bechara

Seja no lombo da “Poderosa II”, uma Norton 500 cilindradas, a famosa motocicleta sobre a qual Che Guevara rodou a América Latina entre 29 de dezembro de 1951 e 31 de agosto de 1952, seja à frente do controverso tribunal da Revolução Cubana, quem percorre as imagens da exposição se depara com homens diferentes: o jogador apaixonado por esportes tão diferentes quanto rúgbi e xadrez; ou o inventor de máquinas [cortador de cana automático, para as lavouras] e ideologias [“o homem novo”, generoso e idealista, em contraposição ao “homem lobo”, o famoso predador Hobbesiano].

“Comecei a trabalhar na história do Che em 1985. Escrevi vários livros, que são biografias complementares, que trazem assuntos diferentes. Fui a Cuba no ano passado para levantar uma série de novos fatos sobre a Revolução. Muitas pessoas dizem que Che Guevara teve sangue nas mãos, e eu queria averiguar isso. Para mim, o sangue que ele tem nas mãos é aquele que adquiriu ao cruzar as linhas inimigas para cuidar dos adversários, após os combates”, defende Cormier, lembrando que Guevara era médico.

Visitar Paris é uma necessidade biológica, um objetivo ao qual me é impossível renunciar, eu poderia atravessar o Atlântico a nado

(Carta de Chez Guevara a sua mãe de 1955)

Che Guevara e o Brasil

“Che Guevara passou pelo Brasil antes de entrar na Bolívia”, conta Cormier, “onde se encontrou com todo o grupo de Marighella”. “Ele foi também recebido com grande pompa em Brasília por Jânio Quadros, antes do golpe militar de 1964”, relata o biógrafo.

“Che Guevara incomodava quando era vivo, mas o extraordinário é que ele continue a incomodar 50 anos depois de sua morte. Quando vivo, incomodava por estar em guerra contra o imperialismo, a CIA [inteligência norte-americana] queria eliminá-lo e ela conseguiu, mas não conseguiu sozinha, eu acredito que houve uma conivência nesta morte com o KGB russo”, revela Cormier.

“O secretário do partido comunista boliviano morreu ano passado onde? Em Moscou, antes que eu pudesse entrevista-lo. Moscou disse a ele, na época: vire-se, você precisa recuperar a direção da guerrilha. Os bolivianos entregaram o Che”, afirma Cormier. “Che privilegiava a revolução no mundo, e não em um país. (...) Fico sempre muito surpreso que ele ainda desperte reações epidérmicas e telúricas, intelectualmente muito fortes”, contextualiza o biógrafo.

“Sangue nas mãos”?

Sobre a suposta responsabilidade de Che Guevara à frente do Tribunal Militar da Revolução Cubana, o biógrafo diz que “ muito se foi dito sobre isso porque Che era o chefe da Cabaña [La Cabaña, fortaleza do século 18 em Havana, onde se realizaram as execuções dos tribunais revolucionários em 1959, quando morreram vários membros da polícia secreta do ditador Batista e outros presos políticos]. No interior da Cabaña, eliminou-se muita gente que era contra o movimento revolucionário e que se mantinha ao lado do antigo governo. Mas Che não participou diretamente destes tribunais, não escolhia quem deveria morrer, eu fiz questão de conversar diretamente com vários antigos membros da Cabaña”, conta o biógrafo.

“Ele sabia das mortes, claro. Podia ouvi-las de seu escritório. Mas não participou diretamente delas, e nesse ponto eu faço meu trabalho como jornalista, passei muito tempo em Cuba para descobrir o que aconteceu realmente dentro da Cabaña. Uma das testemunhas oculares que entrevistei é o francês Luis Alberto Lavandeyra, ex-companheiro do Che, está vivo até hoje, basta falar com ele”, afirma o escritor.

“Na exposição preferimos mostrar a relação de Che com Paris, desconhecida do grande público. Uma exposição é para mostrar fotos, obras de arte, quisemos privilegiar o pensamento e as particularidades dele dentro da relação com a capital francesa”, diz Jean Cormier.

O livro “Che Guevara, tempo de revelações", de Jean Cormier, lançado pela Éditions du Rocher em outubro de 2017.
O livro “Che Guevara, tempo de revelações", de Jean Cormier, lançado pela Éditions du Rocher em outubro de 2017. RFI

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, foi duramente criticada por políticos da direita francesa na abertura da exposição dedicada a Che Guevara. A deputada Valérie Boyer, dos Republicanos, disse que Hidalgo fazia “apologia aos crimes comunistas”. O antigo ministro da Educação de Chirac, Luc Ferry, foi mais longe e publicou em seu Twitter que a prefeita celebrava “um crápula sanguinário que torturou e assassinou mais de 100 infelizes no campo de concentração que dirigia”.

Inspiração

Para Corinne, professora de língua espanhola em Paris, a exposição Le Che à Paris tem uma importância especial.  “Passei na frente da prefeitura e vi o cartaz da mostra, e entrei imediatamente. O destino desse homem, que morreu aos 39 anos, eu mesma tenho 39 anos, acho que me identifico um pouco”, analisa. “Existe também este ideal, este desejo de mudar tudo, de se sentir embalado por uma missão, esse desejo de sublimação de sua própria individualidade que me fascina completamente”, conclui a professora que visitava a exposição na manhã chuvosa desta quinta-feira (4) do inverno parisiense.

Jean Cormier, biógrafo de Che Guevara, durante entrevista à RFI Brasil em sua casa, em Paris, em 4 de janeiro de 2018.
Jean Cormier, biógrafo de Che Guevara, durante entrevista à RFI Brasil em sua casa, em Paris, em 4 de janeiro de 2018. RFI/Márcia Bechara

As venezuelanas Irunu e Tânia também vieram prestigiar a exposição. “Evidentemente, Che nos toca a todos. Quando temos origem latino-americana, isso é até mais forte, porque conhecemos durante nossa infância a realidade que Che viveu, e onde ele tentou combater a injustiça, mas com um pensamento bem internacional”.

“Quisemos ver a exposição para descobrir sua relação com Paris, menos evidente para nós. Mas ele veio aqui diversas vezes, e Paris parece ter sido mesmo uma referência para ele”, diz Tânia, que ganhou seu nome em homenagem, justamente, à ex-mulher de Chez Guevara, segundo ela conta à reportagem. “E nosso outro irmão se chama Ernesto, em homenagem ao Che”, diverte-se a professora de espanhol.

“É importante ver a exposição para poder partilhar com meus alunos esta experiência. Falo bastante com os jovens sobre Che e a América Latina, sobre o movimento revolucionário e sobre nossa história contemporânea”, finaliza Irunu.

Entre polêmica e celebração, a exposição Le Che à Paris fica em cartaz na prefeitura da capital francesa até 20 de fevereiro de 2018.

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