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Rendez-vous cultural

Ateliê parisiense de 1.000 m² acolhe artistas refugiados de guerra

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Eles vieram do inferno e as imagens que trouveram do passado servem agora de inspiração para suas obras. Abdelmonim Rahama escreveu seu primeiro romance na prisão, no Sudão, onde sofria torturas diárias. Oroubah Dieb era escultora conhecida em Damasco, na Síria, mas com a guerra e a falta de materiais, começou a pintar sobre colagens. Kubra Khademi, artista visual, performer e feminista afegã, coleciona corpos de boneca, recuperados do lixo, para ressignificar o corpo feminino afegão. Eles trabalham agora no Atelier des Artistes Exilés, o Ateliê dos Artistas Exilados (AEE), um espaço de 1.000 m² , que recebe cerca de 150 artistas refugiados, inaugurado em setembro de 2017 no 18° distrito de Paris.

Á direita, Ariel Cypel, um dos fundadores do Ateliê dos Artistas Exilados, junto aos artistas, da esquerda para a direita: Rammah Alnabwani (Síria), Fadi Idrees (Palestina) e Oroubah Dieb (Síria).
Á direita, Ariel Cypel, um dos fundadores do Ateliê dos Artistas Exilados, junto aos artistas, da esquerda para a direita: Rammah Alnabwani (Síria), Fadi Idrees (Palestina) e Oroubah Dieb (Síria). RFI/Márcia Bechara
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(Para ouvir o programa, basta clicar na foto acima)

Ariel Cypel, um dos fundadores da associação, conta que os artistas refugiados vêm sobretudo de três partes do mundo: Oriente Médio, África e Cáucaso. "As quatro línguas que utilizamos aqui dentro cobrem a totalidade dessas regiões: francês, inglês, persa e árabe", explica Cypel, que, ao lado de Judith Epaule, vem de uma experiência cultural bem-sucedida no espaço Confluences, conhecido por sua política de inclusão social e diversidade de linguagens artísticas no 20°distrito da capital francesa.

"Ainda não temos artistas da América do Sul, quem sabe depois da crise na Venezuela, ou mesmo no Brasil", divaga o fundador da associação, enquanto segue pelo longo corredor, mostrando com orgulho os detalhes da ocupação dos mil m² do primeiro andar de um grande edifício do 18° distrito, no norte de Paris. "Antes, aqui era uma agência dos Correios. Depois, o espaço pertenceu ao Emmaus (Associação solidária e laica que ajuda pessoas em estado de precariedade na França). O Emmaus nos passou, foi quando ocupamos o lugar. Na sequência, foi necessário negociar com os proprietários, que são grandes empresários franceses, com alguma sensibilidade para causas humanitárias. Eles pagam a conta de luz e nos cederam gratuitamente o espaço, até que o prédio seja finalmente demolido, o que pode acontecer em seis meses ou cinco anos, não sabemos".

O escritor sudanês Abdelmonim Rahama trabalha em seu terceiro romance no Ateliê dos Artistas Exilados de Paris.
O escritor sudanês Abdelmonim Rahama trabalha em seu terceiro romance no Ateliê dos Artistas Exilados de Paris. RFI/Márcia Bechara

Da guerra para a arte, um espaço para a criação

Toturado "diariamente" durante o ano que ficou na prisão, o escritor sudanês Abdelmonim Rahama sonha em trazer sua família para Paris, onde escreve seu terceiro romance, sobre a escravidão na França. 

"Escapei do Sudão depois de ficar na prisão durante um ano. Fui torturado a cada minuto deste ano em que fiquei preso. Fui condenado à morte dentro da prisão por causa dos meus textos. Eu tinha um jornal diário chamado “Sinos da Liberdade”, que foi fechado pelo governo sudanês, depois criei uma outra revista, que também foi fechada. Devido à minha militância pelos direitos humanos, acabei sendo colocado lá", conta Rahama, irritado por ter perdido trechos de seu novo trabalho por causa de uma falha no pequeno laptop portátil que carrega na bolsa, que mais se assemelha a um brinquedo de criança.

"O ateliê é muito grande e muito bonito, nós precisamos de um espaço assim enquanto escritores. Especialmente porque somos refugiados. Por exemplo, estou morando num quarto pequeno com outro cara. Não é um ambiente propício para a escrita", explica o sudanês que aparenta cerca de 50 anos, a voz doce e o vocabulário atento em inglês.

Conhecida na Síria, a artista Oroubah Dieb trabalhou durante 25 anos com esculturas. Com o advento da guerra e a falta de materiais, ela passou a trabalhar com pintura e colagens.
Conhecida na Síria, a artista Oroubah Dieb trabalhou durante 25 anos com esculturas. Com o advento da guerra e a falta de materiais, ela passou a trabalhar com pintura e colagens. RFI/Márcia Bechara

"As casas morrem se seus habitantes desaparecem"

Uma mão no pincel, outra no celular, a artista plástica síria Oroubah Dieb mostra as imagens de sua casa completamente destruída na Síria pelos soldados de Bashar al-Assad, ao mesmo tempo em que explica a inspiração de seu trabalho, cenas da vida cotidiana, o prosaico nascido no meio da violência da guerra.

No canto direito de uma de suas telas, a inscrição "As casas morrem se seus habitantes desaparecem", ao lado de colagens que se assemelham a figuras humanas nos retalhos de uma casa esculpida num muro, com evidentes buracos de balas, janelas abertas para construções de pedra.

"Sou originalmente de Damasco. Depois da guerra me mudei para o Líbano, onde fiquei quatro anos, porque tenho três filhas e achava que ficar perto da Síria seria melhor para elas.  Quando a situação degenerou, achei melhor vir para a França, onde elas poderiam ter um futuro melhor", conta Dieb, escultora conhecida na Síria, onde trabalhou durante 25 anos com materiais diversos.

Ressignificar o corpo e o espaço feminino

No ateliê de Kubra Khademi, performer feminista afegã, vemos também o trabalho de Lina Al-Jikani, que vem da Síria. Há cinco anos, Lina parou de pintar porque não tinha espaço para trabalhar. Ela mora num studio de 10m² com seu marido e não conseguia mais pintar. Aqui no ateliê ela recomeçou a trabalhar. Não temos um calendário de saída dos artistas. Não somos como outros espaços que preveem datas de ocupação. Se eu mando alguém como Lina embora, ela tem que recomeçar do zero", conta Ariel Cypel, que administra o espaço.

"Khademi é uma artista feminista que trabalha muito sobre a questão do corpo feminino no Afeganistão. Ela costuma contar que lá o corpo da mulher já nasce adulto, não tem infância", completa Cypel.

Espaço para profissionalização e autonomia

"Recuperamos o local em abril e os artistas começaram a chegar em julho. Temos hoje 150 artistas inscritos como parte da associação. Nós conseguimos todos os móveis, mesas, cadeiras, todo o material utilizado pelos artistas através de doações ou na rua, não compramos nada", relata.

"A sala principal do Ateliê dos Artistas Exilados é dedicada a encontros com possíveis compradores de espetáculos, organizadores de festivais, colecionadores. A ideia é que o artista possa ter um local apropriado para reuniões e para receber parceiros e mediadores de seu processo criativo, e para mostrar seu trabalho, estimulando sua autonomia", explica Cypel.

"Quando chegamos aqui compramos um computador e uma impressora, apenas isso. O resto nós conseguimos, nós fizemos e continuamos a fazer um apelo à solidariedade de pessoas e instituições, para ajudar os artistas. 100% do dinheiro do setor privado que conseguimos por meio da associação vai para os artistas, sob a forma de bolsas de residência ou de material de trabalho", finaliza o fundador do Ateliê dos Artistas Exilados.

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