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Linha Direta

Transporte público, bicicleta, cafezinho do próprio bolso: conheça a filosofia finlandesa de respeito ao dinheiro público

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Os hábitos dos funcionários da embaixada da Finlândia refletem a filosofia do país de respeito ao dinheiro público e de igualdade social. Para evitar gastos desnecessários, a embaixadora vai de bicicleta para o trabalho e até o tradicional cafezinho na repartição é pago pelos próprios funcionários.

Embaixadora finlandesa na Suécia, Liisa Talonpoika, abandonou o carro oficial e vai todos os dias para o trabalho de bicicleta.
Embaixadora finlandesa na Suécia, Liisa Talonpoika, abandonou o carro oficial e vai todos os dias para o trabalho de bicicleta. Claudia Wallin
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Claudia Wallin, correspondente da RFI em Estocolmo

Os termômetros marcam dois graus, e a embaixadora da Finlândia na Suécia se prepara para ir ao trabalho - sem carro oficial, nem motorista. Todos os dias, Liisa Talonpoika enfrenta o frio e pedala três quilômetros até seu gabinete, na sede da Embaixada finlandesa em Estocolmo.

“Estou economizando o dinheiro do contribuinte”, diz a embaixadora à RFI. “Em segundo lugar, é um meio de locomoção mais limpo e sustentável. E em terceiro lugar, adoro pedalar”, acrescenta.

As pedaladas da embaixadora refletem a cultura finlandesa de respeito ao dinheiro público no país, que se tornou - assim como os vizinhos nórdicos - um modelo de igualdade social.

“Penso que é importante usar o dinheiro dos contribuintes de forma responsável”, pontua Liisa Talonpoika. “Além da ênfase na igualdade social, a Finlândia é também uma sociedade aberta e, portanto, os gastos realizados com o dinheiro público são submetidos à inspeção dos cidadãos e da imprensa. Eu também sou uma contribuinte, e quero saber como meu dinheiro é gasto”, destaca.

Carro oficial, a Embaixadora só usa para comparecer a eventos diplomáticos em lugares mais distantes. “Do contrário, pedalo. E não tenho medo de chuva”, faz questão de dizer.

Deputados têm poucos privilégios

No cenário político, a parcimônia no uso do dinheiro público também é evidente: políticos finlandeses não têm direito a carro com motorista. Assim como na Suécia, os parlamentares da Finlândia recebem apenas um cartão anual para utilizar os transportes públicos. O salário de um deputado é de € 6.614 (cerca de R$ 30 mil), o que é aproximadamente o dobro do que ganha um professor do ensino fundamental.

E não há aposentadorias especiais: o parlamentar que cumpre mandatos limitados tem direito a receber pensão apenas por um período máximo de três anos, ou até que encontre um novo emprego. Diferentemente dos suecos, parlamentares finlandeses podem contratar assessores particulares - mas o limite é de apenas um assessor para cada deputado. Também ao contrário dos colegas suecos, deputados finlandeses têm imunidade parlamentar - e não viram manchete de jornal quando pegam táxi, em vez de tomar o ônibus.

“Políticos finlandeses têm não privilégios como em outros países, mas eles têm direito a certos benefícios, como utilizar táxi sem limitações. Mas os gastos dos políticos são fortemente fiscalizados pela mídia, que sempre expõe quaisquer abusos nas manchetes”, diz Antti Ronkainnen, pesquisador do departamento de Ciências Políticas da Universidade de Helsinque, em entrevista à RFI.

Ética protestante

A cultura finlandesa de respeito ao dinheiro público é alicerçada em uma ética protestante, na qual a honestidade e a integridade são valores fundamentais - diz Johannes Kananen, especialista da Universidade de Helsinki no modelo nórdico de bem-estar social. “O trabalho árduo é outro valor da cultura finlandesa. E pode-se dizer que nós respeitamos tanto o dinheiro público, que temos medo - e até mesmo vergonha - de usá-lo”, destaca ele.

A igualdade social também é um aspecto relevante na sociedade finlandesa: “Aqueles que querem ser melhores do que os outros são vistos de maneira suspeita. Por exemplo, os parlamentares devem usar o transporte público, ainda que não sejam proibidos de pegar um táxi. Por isso, se um deputado gastar muito com corridas de táxi, ele provoca um escândalo no país”, diz Kananen.

Apesar da ausência de privilégios excessivos aos políticos, o pesquisador Antti Ronkainnen aponta que a Finlândia paga altos salários aos presidentes de empresas públicas. “O diretor geral dos Correios foi forçado a renunciar recentemente, em consequência das críticas furiosas que recebeu após a revelação de que ganhou um salário de 900 mil euros (cerca de 4 milhões de reais) no ano passado”, conta Ronkainnen.

“Os presidentes de empresas públicas como a (companhia aérea) Finnair, a VR (empresa ferroviária), Alko (monopólio estatal do álcool) e Yle (TV pública finlandesa) ganham salários que variam de 500 mil euros (cerca de 2,2 milhões de reais) a 650 mil euros (2,9 milhões de reais) por ano”, completa o pesquisador.

País mais feliz do mundo

Ao lado dos vizinhos nórdicos, a Finlândia está entre os países da Europa que apresentam os maiores níveis de confiança da população no sistema político, no judiciário e na polícia, segundo dados da agência de estatísticas europeia Eurostat.

E pelo segundo ano consecutivo, a Finlândia também foi apontada em 2019 pelo World Happiness Report como o país mais feliz do mundo. O índice se baseia em fatores como confiança nas instituições públicas, o apoio social que os cidadãos recebem do governo, expectativa de vida saudável e os níveis de corrupção governamental.

No ranking de 156 países analisados, os países nórdicos dominam cinco das dez primeiras posições, e o Brasil aparece em 32º lugar.

Sem cafezinho grátis

No interior da embaixada da Finlândia em Estocolmo, a modernidade do design finlandês convive com a tradição do respeito ao dinheiro público - até na pausa para o café. Que não é gratuito: todo mês, os funcionários fazem uma vaquinha para comprar café e leite - com os próprios salários.

“Ninguém aqui acha que tem o direito de tomar café de graça com o dinheiro do contribuinte”, diz o diplomata Jukka Nikulainen, conselheiro de assuntos políticos e econômicos da Embaixada.

Ele diz que comprar o próprio café e leite é um costume antigo em todos os ministérios, órgãos públicos e embaixadas da Finlândia - e enfatiza que a Embaixadora Liisa Talonpoika também participa da vaquinha.

“A Embaixadora também paga”, conta Nikulainen. “É preciso usar o dinheiro público de maneira responsável e sustentável”.

Igualdade social até na sauna

Além do respeito ao dinheiro público, um dos principais valores da sociedade finlandesa é a igualdade social. A Finlândia ostenta uma das mais baixas taxas de desigualdade de renda do mundo, e o segundo menor índice de pobreza entre os países da OCDE. Também apresenta a segunda menor taxa de desigualdade do mundo entre crianças, segundo a Unicef.

Um dos principais propulsores do igualitarismo finlandês e do desenvolvimento do país foi a criação de um celebradíssimo modelo de excelência em educação pública, que oferece oportunidades iguais a todas as crianças do país. A Finlândia tem a maior taxa de alfabetização do mundo, segundo o ranking World´s Most Literate Nations.

E para os finlandeses, um dos símbolos desse igualitarismo está na tradicional cultura da sauna.

Como na maioria das casas e empresas da Finlândia, a embaixada em Estocolmo também tem a sua sauna. A diretora do setor cultural da embaixada, Petra Theman, conta que na sauna são realizadas reuniões, festas e confraternizações de fim de ano entre os funcionários. Há espaços separados para homens e mulheres. Mas todos participam das celebrações - desde o porteiro até à embaixadora. E como manda a tradição finlandesa, todos devem entrar na sauna sem roupas.

“É para nos lembrar de que somos todos iguais” diz Petra Theman. “Sem roupas, não é possível diferenciar entre quem é o patrão e quem é o empregado. E essa também é uma forma de lembrarmos que não nascemos diferentes uns dos outros, não importa de onde você vem, ou em qual família nasceu. Esta é na verdade uma expressão da sociedade finlandesa: somos todos iguais”, pontua Petra.

Na Europa, a Finlândia é o terceiro país mais justo socialmente, atrás da Dinamarca e da Suécia. É ainda o terceiro país mais próspero do mundo, segundo relatório do Legatum Institute - e o terceiro menos corrupto do planeta, na lista do Índice de Percepção da Corrupção.

Em termos de igualdade de gênero, a Finlândia também aparece entre os primeiros lugares. A Finlândia foi o primeiro país do mundo a conceder plenos direitos políticos às mulheres, em 1906. Hoje, 41,5% das cadeiras do Parlamento finlandês são ocupadas por mulheres.

Além disso, é da Finlândia o terceiro melhor sistema de aposentadorias do mundo, de acordo com o relatório Melbourne Mercer Global Pension Index. Os finlandeses são ainda os melhores do mundo em termos de proteção dos direitos humanos fundamentais, segundo o índice The World Justice Project.

Como se não bastasse, a Finlândia tem também o ar mais puro do mundo, de acordo com estatísticas da Organização Mundial de Saúde, e o maior número de florestas da Europa.

E é o país mais seguro do mundo, na avaliação do World Economic Forum.

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