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Especial Berlim/30 anos da queda do Muro

Como vive e o que pensa hoje a geração que assistiu há 30 anos a queda do muro de Berlim

Eles tinham 22 e 16 anos respectivamente e, numa noite fria de 9 de novembro de 1989, preparavam-se para viver um dos momentos decisivos de sua geração, e do mundo ocidental. Do lado oeste de Berlim, o cientista político alemão Gerd Harders, hoje com 52 anos, assistia incrédulo às notícias que via na televisão. Neste exato momento, do outro lado do muro, na Alemanha comunista, a arquiteta e paisagista Anja Steglich, 46, jantava ao lado da família e não desconfiava que, no dia seguinte, uma enorme barreira de concreto de 140 km de extensão teria começado a ruir, e junto com ela, uma série de proibições e estereótipos, reais ou simbólicos. Hoje amigos, Gerd e Anja contam que sonhos sobreviveram a partir desta noite, há três décadas, quando caiu o muro de Berlim.

O cientista politico e ex-professor da Universidade Livre de Berlim, Gerd Harders, em dois momentos: aos 52 anos, na sala de sua casa em Berlim, e aos 22, pouco antes da queda do muro.
O cientista politico e ex-professor da Universidade Livre de Berlim, Gerd Harders, em dois momentos: aos 52 anos, na sala de sua casa em Berlim, e aos 22, pouco antes da queda do muro. Arquivo pessoal
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Enviada especial a Berlim

“Não podia acreditar no que via na televisão. Parecia uma ficção da vida real. Não queria ver com os olhos da televisão, queria ir ver com meus próprios olhos”, conta o cientista político Gerd Harders, ao rememorar a noite de 9 de novembro de 1989. “Era absolutamente impensável aquilo estar acontecendo. Era como se alguém anunciasse a vinda de um messias, era irreal, não era algo que pudesse ser deduzido através de fatos. Fomos todos pegos de surpresa, ninguém havia imaginado que aquilo fosse possível”, lembra-se.

“Havíamos testemunhado o episódio da tomada da embaixada da Alemanha Ocidental em Praga pelos alemães orientais, eles conquistaram de certa forma sua liberdade através desse movimento, havíamos assistido a isso, mas, ainda assim, era muito difícil acreditar no fim da cortina de ferro”, diz. “Eu estava assistindo este telejornal diário, quando o apresentador de repente disse: a fronteira está aberta. Era impossível acreditar, ninguém esperava isso. Nem mesmo a CIA esperava isso. E, como sabemos hoje, até os guardas que faziam a segurança nas fronteiras foram surpreendidos pela notícia”, diz.

“A única pista que eu tive que algo pudesse estar mudando, antes mesmo da queda do muro, foi um amigo, cuja tia morava no leste, e que tinha uma namorada lá, que me disse que ‘alguma coisa’ havia ‘acontecido’ durante o verão. Ele disse que não sabia o que se produziria a partir disto, das mudanças que ele havia notado no regime neste verão [do hemisfério Norte] de 1989, mas que ‘alguma coisa estava acontecendo’”, lembra.

Harders era pouco mais que um garoto de classe média da Alemanha Ocidental, a República Federal da Alemanha (RFA), em 1989, aos 22 anos. Estudante de Ciências Políticas na Universidade Livre de Berlim, instituição parceira da Sciences Po, em Paris, ele tomou a decisão de pegar o carro e cruzar a fronteira após falar com um colega de Hamburgo e uma amiga dinamarquesa. “Antes havia cruzado o check point apenas uma vez. O leste era um lugar que gostávamos de ir porque nosso dinheiro valia muito, dava para ficar bêbado muito rápido, e fazíamos a festa nas livrarias. Era possível comprar muitos livros bons com muito pouco dinheiro”, conta.

“Se você vinha do lado ocidental, era muito mais fácil conseguir uma permissão especial para visitar o outro lado. Havia pessoas que cruzavam a fronteira apenas para comprar instrumentos musicais no leste, porque eram de excelente qualidade e muito baratos, como guitarras, por exemplo”, conta Harders. "Pegamos o carro, fomos até o check point Charlie. Nunca me esquecerei deste soldado da fronteira, sentado numa barreira anti-tanques, fumando um cigarro e sorrindo. Ele olhou a gente e disse: não fiquem aí parados, venham!", conta.

Ir à Tchecoslováquia para "ver as tias"

Essa realidade, no entanto, em nada correspondia à da então adolescente Anja Stelgich, do outro lado do muro, na República Democrática Alemã (RDA), a Alemanha comunista. “O muro na minha vida sempre foi uma realidade impactante. Era impossível viajar para lugares ‘não-permitidos’. O muro era também um sistema político. Eu cresci num sistema que me dizia coisas sobre esse muro que não eram exatamente verdade. Não era exatamente uma ditadura. O que havia era uma censura intelectual da juventude. Fui censurada de observar a realidade, e é isso que o muro significou para mim, essa proibição”, conta a arquiteta e paisagista, especialista em renovação de espaços urbanos.

“Eu tinha 16 anos quando o muro caiu, mas passei a minha vida escolar lá dentro, tenho muitas lembranças. Éramos uma típica família alemã separada pelo muro, uma parte no leste, outras duas partes no oeste da Alemanha”, diz. “A política intervinha diretamente em nossas vidas, era impossível nos encontrarmos de uma maneira fácil. Para que pudéssemos nos reunir, éramos obrigados a viajar para a Tchecoslováquia. As duas irmãs da minha mãe moravam do lado ocidental e tínhamos que fazer todo esse caminho para vê-las”, detalha Stelgich.

“Eu estava no meu último ano escolar antes da universidade, e deveria entrar num curso preparatório de dois anos, mas eu decidi fazer uma pausa de um ano na minha vida, para reavaliar tudo”, conta a arquiteta. “Acho que esta pausa tem muito a ver com o momento político que tinha acabado de viver. Nesse turbilhão, você tenta encontrar o seu caminho. Entre a RDA e o lado ocidental, existiam tantas possibilidade", avalia.

"Meus pais e minha família, todos também estavam se transformando. Tirei um ano para pensar sobre o mundo e sobre mim mesma. Fui para o Brasil com o Instituto Goethe. Quando voltei, trabalhei reconstruindo jardins de infância para crianças, e conheci um cara que fazia paisagismo, foi quando decidi o que queria fazer”, lembra.

A arquiteta e paisagista alemã Anja Steglich, 46 anos, e aos 16, logo apos a queda do Muro de Berlim, em 1989.
A arquiteta e paisagista alemã Anja Steglich, 46 anos, e aos 16, logo apos a queda do Muro de Berlim, em 1989. RFI/Marcia Bechara

Vigilância política e o “segundo Estado”

“Era normal saber, por exemplo, que a Stasi estava nos observando”, conta a arquiteta, numa referência à temida polícia do regime comunista alemão. “Isso era a realidade para mim até os 16 anos”, lembra. “Meus pais conseguiam avaliar e equalizar o impacto do que estávamos vivendo, da vigilância política. Eles sabiam que, na escola, se não estivéssemos alinhados com a política dominante, haveria repressões. Eu podia sentir a angústia deles, mas lidava com isso”, diz a arquiteta, hoje mãe de duas crianças pequenas.

“Oficialmente, nunca tivemos contato diplomático com o Estado da Alemanha Oriental”, conta Gerd Harders. “Na verdade, nunca aceitamos que esse Estado existisse”, diz. “Para mim, era completamente natural que nosso país fosse dividido em dois Estados, mas a verdade é que os alemães ocidentais nunca aceitaram esse ‘segundo Estado’. Um exemplo desta loucura política é o fato do maior jornal ocidental sempre usava aspas quando se referia à Alemanha comunista como um país. Eles faziam isso para deixar claro que se tratava apenas de uma ‘expressão’, não uma realidade”, avalia.

“Para mim, a existência de duas Alemanhas era um fato concreto mas, racionalmente, não fazia o menor sentido. Uma nação separada em dois Estados, isso nunca fez sentido para mim”, diz. O cientista político lembra que, para alguém do leste, imaginar a reunificação era considerado uma traição aos ideais socialistas. “Mas para nós, do lado ocidental, era como um Estado fake, criado pela União Soviética. Como uma ficção de fato”, conta.

O muro invisível, o silêncio e a extrema direita

“O muro ainda continua lá, de maneira invisível, obviamente, e majoritariamente econômico. Os funcionários públicos do leste, por exemplo, sempre receberam salários menores do que outros no mesmo cargo do lado ocidental. A razão é clara: os escritórios orientais recebem menos dinheiro da Alemanha”, diz. “Isso foi equalizado apenas esse ano, três décadas após a queda do muro”, afirma. “As aposentadorias do lado ocidental também são maiores, pelo mesmo tempo contribuído”, diz Harders.

O silêncio sobre os anos da cortina de ferro incomodam particularmente Anja Stelgich. “Nunca entendi porque não conversamos sobre isso, não refletimos sobre esse momento. Isso me lembra o silêncio de nossos avós sobre nosso passado nazista, é a mesma coisa”, avalia a arquiteta, que acredita que o silêncio que paira sobre os anos antes da queda do muro de Berlim pode estar ligado ao fortalecimento da extrema direita na Alemanha. “Claro, é preciso voltar a esse momento, falar sobre ele. Tenho certeza que, quando meus filhos forem mais velhos, falaremos sobre minha juventude e sobre o leste de Berlim”, diz.

“Contarei a eles como era viver em um sistema político que se desmancha de um dia para o outro, e como essa mudança nos atingiu”, afirma Stelgich. “Falar sobre isso nos ensina muito sobre resistência, sobre ser crítico, político, sobre como lutar pelos seus direitos no meio desta transformação”, estima.

Para Harders, o fenômeno do crescimento da extrema direita na Alemanha tem a ver com a realidade pós-reunificação. “Quando o regime cai, os alemães do leste se livram de um Estado considerado totalitário, mas perdem também uma liderança importante. Eles ficam órfãos dessa liderança, dessa grande mão do Estado. O partido de extrema direita alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) tem suas bases no leste e acredito que isso aconteça por causa deste isolamento”, avalia.

Sobre um futuro possível para a Alemanha, o especialista fala sobre “aumento dos extremos, seja à direita ou à esquerda”. “Mas não gosto e não uso o termo ‘esquerda radical’ para o [partido] Die Link, por exemplo. Essa expressão é particularmente instrumentalizada quando o sistema quer se referir à ‘violência da esquerda radical’, quando o centro da discussão deveria ser, na verdade, a enorme violência perpetrada pela extrema direita”, afirma.

A emoção de ter sido testemunha ocular da história

“Sabe, eu achava que não me emocionaria. Mas ontem, passando por Alexanderplatz, foi difícil conter as lágrimas”, lembra Anja Stelgich, durante conversa com a reportagem num café no meio da agitação de Mitte, espécie de centro nervoso de Berlim. “Como eu disse, é preciso falar mais sobre o que vivemos. E, dando essa entrevista, começo a me lembra aos poucos de outubro e novembro de 1989. Sinto que mais do que nunca, é importante abrirmos espaço para este tipo de discussão”, diz.

“Estava assistindo esses dias um filme de ficção, mas baseado em fatos reais, sobre a queda do muro, e foi difícil não chorar”, diz Gerd Harders. “Emocionalmente, ainda estou muito ligado a este momento, a estes sentimentos”, confessa. “Eu acho que a emoção vem do fato de ter feito parte da história”, diz o cientista político. “Eu não fiz nada de fato. Não transformei a história, eu apenas estava lá”, conclui.

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