Brexit mostra força e exemplo da democracia parlamentar britânica
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O Reino Unido continua afundando na esquizofrenia histérica. Mais uma vez, um governo britânico não consegue um voto do Parlamento favorável ao Brexit. Sair ou não sair da União Europeia, eis a questão. Todo mundo está exausto. A população não aguenta mais só falar nisso, nem ficar suspensa nos debates infindáveis dos parlamentares.
Os líderes europeus também perderam a paciência, esperando em vão uma solução definitiva. A Europa está praticamente paralisada por tanta incerteza. A mais antiga democracia do planeta está virando objeto de chacotas pelas reviravoltas e manobras bizantinas das facções parlamentares e dos gabinetes governamentais.
Gozar as instituições políticas britânicas é fácil, mas a realidade é bem mais interessante. O Reino Unido está fazendo uma demonstração de democracia. O problema é inédito: como é que um sólido sistema democrático pode resolver um problema insolúvel criado pela própria prática democrática?
O referendo de 2016, que deu 52% dos votos a favor do Brexit contra os 48% que não queriam sair da Europa de jeito nenhum, foi uma farsa. Responder por sim ou por não a um problema tão complexo e tão fundamental para o futuro econômico e político do país, e sem apresentar nenhum projeto ou estratégia para administrar tamanha mudança, só podia criar uma confusão geral.
O país saiu do voto completamente dividido – e por muito tempo. Respeitar o resultado das urnas? Claro, mas como? No Reino Unido – aonde não há uma Constituição escrita – o centro da soberania não é o governo ou o Primeiro-Ministro, é o Parlamento de Westminster. São os parlamentares que decidem em última instância: de que maneira sair da União Europeia ou então, como voltar atrás para não sair.
Obviamente é o governo que negocia com a Comissão Europeia e os outros governos do continente, mas só Westminster pode dar o aval final.
Só que o Parlamento também está dividido e fragmentado. A ex-chefe do governo Thereza May não conseguiu maioria que aceitasse o seu plano de Brexit negociado com os “continentais”. E agora, Boris Johnson, que chegou ao poder sem nem ser eleito pelo povo e quer sair a todo custo, tem ainda menos maioria no Legislativo. Em poucas semanas, o atual primeiro ministro já perdeu todos os votos e manobras que tentou para pressionar os parlamentares.
A única cartada que sobra é apostar no cansaço geral e tentar intimidar Westminster, jogando o resultado do referendo popular contra a legitimidade do Parlamento. Por enquanto, os legisladores, com o apoio da Corte Suprema, responderam com rotundos “nãos” e com manobras dilatórias que afirmam, sem sombra de dúvidas, a preeminência do Legislativo.
Com uma população dividida em dois e uma falta de clareza absoluta quanto ao caminho a percorrer, Westminster está tendo o papel chave que sempre teve na democracia britânica. Todas as contradições dessa situação inédita e perigosa estão sendo discutidas e tratadas, até a exaustão, no âmbito parlamentar e de maneira aberta.
Uma verdadeira pedagogia política democrática para o conjunto da população, que continua expressando suas diversas opiniões – por mais radicais que sejam – sem nenhuma forma de violência. Basta olhar para o que está acontecendo na Europa continental e no resto do mundo para constatar que não é bem assim alhures.
É até possível que Boris Johnson acabe conseguindo um assentimento minimalista do Parlamento. Ou talvez seja até obrigado a aceitar um novo referendo. Mas isto não resolve o problema. Se houver Brexit, o Reino Unido ainda terá de ficar na União Europeia durante dois anos para negociar um novo acordo comercial com o Continente.
E as outras nações do Reino Unido (a Escócia, a Irlanda e o País de Gales) que hoje se opõem ao Brexit, poderão perfeitamente tentar referendos de independência. O Reino parece cada vez mais desunido. Mas a democracia parlamentar britânica continuará brigando e administrando a situação. Um exemplo de democracia, para os britânicos, e todos nós.
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