Opinião: acordo com UE é chance para Mercosul ter mentalidade capitalista moderna
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Levou vinte anos. Finalmente o anúncio político do acordo União Europeia/Mercosul chegou. Após duas décadas de negociações e longas paralisias. Agora falta assinar e ratificar. Mas passar pelo crivo do Parlamento Europeu e dos Legislativos de cada Estado membro da União não vai ser nenhum piquenique. Pode durar meses e até anos. Mas sem dúvida, é uma ótima notícia para ambos os lados. Mesmo se por motivos bem diferentes.
Para os europeus trata-se de uma das jogada no grande tabuleiro estratégico do enfrentamento entre os Estados Unidos e a China. Poucos meses depois do acordo de livre-comércio com o Japão e um dia antes do acordo com o Vietnam.
A Europa não quer virar salame do sanduíche da guerra sino-americana. A queda de braço Trump/Xi Jinping, que arrisca dividir o planeta em dois blocos antagônicos, é uma ameaça mortal para a economia europeia. E para a capacidade de continuar defendendo seus interesses globais.
Donald Trump, com suas posturas agressivas e unilaterais, não para de ameaçar a Europa com aumentos de tarifas. E nunca escondeu sua preferência por uma UE fragmentada, sem força própria para resistir aos seus desígnios. Dividir para reinar.
Mas para os europeus, a ficha chinesa também caiu: o plano estratégico de Pequim é comprar, roubar ou impor transferências de tecnologia de ponta americana e europeia, para tornar-se a potência dominante do século XXI. Subsidiando suas estatais, controlando seu setor privado, fechando o seu mercado interno e expulsando de mansinho as empresas ocidentais que ainda trabalham no país.
Tabuleiro político-comercial
Os dirigentes do Velho Continente também desconfiam – e muito – do mastodonte asiático. Sobretudo que os chineses querem dar uma de bonzinho para convencer a Europa de se manter neutra na pendenga com Washington. Não é por nada que o último documento oficial da Comissão Europeia sobre as relações com a China fala de “rivalidade sistêmica”.
As prioridades da UE para não acabar esmagada são simples. Primeiro, defender o multilateralismo contra a força unilateral de Washington e Pequim: reformar e reforçar a Organização Mundial do Comércio e assinar acordos bilaterais e bi-regionais de livre-comércio.
A ideia é defender regras de intercâmbio comercial que garantam o desenvolvimento das cadeias de valor europeias em grandes mercados de países emergentes e em desenvolvimento. Os 250 milhões de consumidores potenciais do Mercosul é um bom prato.
Os europeus também tentam utilizar as atuais dificuldades econômicas da China para convencê-la a apoiar o sistema de regras e tomada de decisões multilaterais. Particularmente nos campos da luta contra a mudança climática, do respeito dos direitos humanos, da segurança regional e da boa governança nas políticas de desenvolvimento. Valores essenciais do dito “modelo social europeu”.
Enfim, o objetivo de todos esses acordos e jogadas é ganhar tempo para implementar uma nova política industrial visando transformar a Europa numa potência global das tecnologias de ponta, capaz de aguentar o tranco diante dos Estados Unidos e da China.
Mentalidade capitalista moderna
Para a UE, o acordo com o Mercosul é só um movimento nesse jogo global. Mas para o Brasil e seus parceiros mercosulinos as consequências são muito mais importantes e positivas. Mesmo se o acordo em si já vem tarde e só vai ser realmente implementado daqui a vários anos. A maior vantagem é ter aceito se abrir ao comércio, investimentos, serviços e compras governamentais do maior mercado do mundo.
Até que enfim, os países do Cone Sul estão aceitando o princípio da livre competição dos atores econômicos. Depois de décadas – se não centenas de anos – encerrados num modelo estatizante de substituição de importações que só provocou mais clientelismo, rentismo, corrupção, e terríveis desigualdades sociais. Com o anúncio tardio do acordo com a Europa, as economias do Mercosul ainda têm uma chance de adotar uma mentalidade capitalista moderna e de abandonar a sina da “casa grande senzala”. Libertas quae sera tamen.
Alfredo Valladão é professor de Ciências Políticas no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po).
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