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Dinamarca/religião

"Estamos voltando às raízes do Islã", diz imame de mesquita só para mulheres na Europa

Palestrante, autora de três livros sobre o Islã, ex-apresentadora de um programa de televisão e ex-candidata ao parlamento, Sherin Khankan é bastante conhecida na Dinamarca pelas pessoas que se interessam pelo debate sobre o islamismo.

A imame Sherin Khankan, que dirige a primeira mesquita só para mulheres da Europa
A imame Sherin Khankan, que dirige a primeira mesquita só para mulheres da Europa Nikolai Linares / Scanpix Denmark Scanpix / AFP
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Margareth Marmori, correspondente da RFI em Copenhague

Apesar do currículo já extenso, será provavelmente por um título mais recente que ela será ainda mais lembrada no futuro. Sherin, de 40 anos, é uma das primeiras mulheres a se tornar imame na Europa e está à frente da fundação da primeira mesquita para mulheres da Escandinávia, que entrou em funcionamento há alguns meses no centro de Copenhague.

Filha de uma enfermeira finlandesa e de um artista sírio que chegou à Dinamarca como refugiado político, a socióloga Sherin é mãe de quatro filhos e concilia o trabalho voluntário na mesquita com estudos de psicoterapia cognitiva e a direção de uma organização não-governamental que assiste mulheres e meninas vítimas de agressões psicológicas e controle social e religioso. Foi logo depois das tradicionais orações de sexta-feira na mesquita Marian, que Sherin concedeu a seguinte entrevista:
 

RFI - Por que é importante criar uma mesquita liderada por mulheres imames?
Sherin Khankan - Em primeiro lugar, é muito importante questionar as estruturas patriarcais nas instituições religiosas. Mulheres têm os mesmos direitos que os homens em quase todas as áreas, mas a esfera religiosa ainda é muito dominada pelos homens. Essa estrutura patriarcal é perigosa porque o que acontece numa mesquita afeta as estruturas familiares e sociais. Ao abrir uma mesquita com imames mulheres, nós na verdade estamos seguindo os passos do profeta Maomé que também desafiou a tirania e as estruturas patriarcais de seu tempo. Além disso, o profeta permitiu que suas mulheres conduzissem as orações para outras mulheres. Portanto, o que estamos fazendo não é nada novo, não é uma invenção, não é uma reforma do Islã. De fato, estamos retornando às raízes do Islã e tentando fazer o que o nosso profeta praticava. Em segundo lugar, eu também pretendo desafiar a crescente islamofobia na Europa e no resto do mundo. A criação de uma mesquita apenas com imames mulheres pode ajudar a mudar a imagem do Islã porque fica difícil repetir a narrativa comum de que o Islã é uma religião de opressão feminina quando há mulheres liderando mesquitas. A partir disso, a mídia poderá passar a nos procurar quando tiver uma questão sobre o Islã e isso pode aos poucos mudar a imagem da nossa religião. Em terceiro, nós queremos desafiar as interpretações extremistas e mais tradicionalistas do Islã. Queremos ser uma alternativa a essas formas de interpretar o Islã.

RFI - Então, o que você está propondo não é uma reforma do Islã?
SK - Não, não é. O que proponho é voltar às raízes. Muitos muçulmanos ignoram nossa história e tradições e não sabem que imames mulheres são parte da história do Islã. Aliás, no Islã, há muitos conceitos diferentes sobre a figura da mulher. Muitas pessoas que acham que estamos tentando reformar o Islã desconhecem a história da nossa religião.

RFI - Embora grande parte das religiões seja controlada por homens, você acredita que há espaço para que as mulheres desempenhem um papel mais ativo nas religiões?
SK - Claro que há. Mas é verdade que a tradição patriarcal em instituições religiosas é um problema mundial. Na Dinamarca, foi só em 1948 que a Igreja Protestante teve sua primeira pastora. A Igreja Católica ainda não se abriu a essa possibilidade.

RFI - Há quem critique a sua mesquita por não permitir que homens assistam às orações.
SK - No início do projeto eu defendia uma mesquita aberta a todos, mas a maioria do conselho que a rege acabou se voltando contra a ideia. Assim é com a democracia. Hoje estou contente com decisão, que foi sensata, porque quando você quer criar mudanças, tem de começar de forma sábia e devagar. Se tivéssemos tentado abrir as orações de sexta-feira imediatamente para ambos os sexos, teríamos criado um caos porque a comunidade muçulmana na Dinamarca não está preparada para isso. Assim, estamos pisando num terreno seguro. Ninguém pode dizer nada contra nós porque na verdade estamos seguindo os passos do profeta Maomé. Ninguém pode negar a noção de que as mulheres podem liderar as orações para outras mulheres. Três em quatro escolas islâmicas já permitem isso.

RFI - Mas a proibição da participação de homens nas orações foi uma concessão com a qual a mesquita foi obrigada a concordar diante da oposição a um público misto?
SK - Para alguns de nós, foi uma concessão, para outros, foi a decisão ideal. Para mim, inicialmente foi realmente uma concessão, mas agora estou contente com a decisão porque, se já enfrentamos oposição apenas por propor uma mesquita de mulheres para mulheres, posso imaginar que teríamos uma oposição muito maior se tivéssemos proposto mulheres à frente de orações para homens e mulheres. Mas as orações são para adorar Alá e, na minha opinião, não é importante se é uma mulher ou homem que as conduzem. Aliás, exatamente porque não é importante é que eu me pergunto porque não poderia ser uma mulher no lugar de um homem. Mas não é algo urgente, essencial que as orações de sexta-feira sejam abertas aos homens. O que é urgente é propagar valores muçulmanos progressistas e ter mulheres na mesquita que possam guiar as orações e fazer a “khutba” (o sermão que faz parte das cerimônias) sobre temas relacionados aos direitos das mulheres.

RFI - Mas a decisão deve ter desapontado algumas pessoas. Há, por exemplo, homens que gostariam de participar das orações lideradas pelas imames?
SK -É verdade que a decisão entristeceu algumas pessoas. No conselho que administra a mesquita temos homens que gostariam de participar das orações e por isso estamos abrindo horários para a meditação islâmica chamada “Dhikr”, que é outra maneira de adorar Alá. Essas sessões são uma forma de mostrar que os homens não são indesejados aqui. Durante toda a minha vida eu tenho lutado contra todos os tipos de segregação e eu mesma sempre orei ao lado de homens e cheguei até a conduzir orações para homens, mas se queremos construir uma ponte, não podemos sair queimando as que já existem. Temos de ser sensíveis e levar em consideração a comunidade da qual fazemos parte.

RFI - Qual tem sido a reação do movimento feminista dinamarquês à Mesquita Marian?
SK - Há opiniões diferentes sobre o assunto. Algumas feministas estão muito felizes com a iniciativa, incluindo algumas que me criticavam. Mas há também algumas que são contra porque as orações são fechadas aos homens, o que, para elas, significa que a mesquita não representa uma reforma verdadeira. Elas nos acusam de não estarmos fazendo progresso bastante. Eu acho isso triste e infantil porque elas não entendem nossa origem e a importância de não queimar as pontes pelas quais você passa. Também há feministas que não gostam de religião e que acham que qualquer tipo de ativismo organizado por meio de uma religião é perigoso para o avanço nas questões da mulher. Aqui estamos defendendo bandeiras feministas, mas o mais importante para nós é propagar valores islâmicos progressistas. É óbvio que o feminismo islâmico é uma parte grande dessa batalha, mas o feminismo islâmico pode ser compreendido de várias maneiras. Além disso, nossa mesquita não é apenas para mulheres, temos homens no conselho que tem um homem como vice-presidente.

RFI - Que outras críticas vocês têm recebido contra a iniciativa?
SK - De modo geral, as pessoas são muito positivas em relação à mesquita e estamos entrando em contato com muçulmanas e progressistas do mundo inteiro que estão interessadas em nossa proposta. Hoje tivemos irmãs vindas da Noruega e Suécia que vieram até aqui só para estar conosco na oração de sexta-feira. Acabamos de receber uma carta do parlamento britânico nos convidando para uma reunião para discutir como estabelecer um conselho sobre a Lei Sharia lá. Eu poderia falar muito sobre a oposição que recebemos, mas raramente me concentro nela porque se eu o fizesse, essa seria a narrativa que seria divulgada e se tornaria mais legítimo se opor a nós. Se apenas falamos do apoio que recebemos, se torna mais legítimo nos apoiar. Mas posso dizer que a oposição ao projeto tem sido muito moderada, talvez porque eu seja uma pessoa conhecida que tem falado sobre o Islã pelos últimos 15 anos. Muita gente sabe que eu prefiro um debate com nuances e que eu não pretendo deslegitimar as opiniões das outras pessoas. As posições muçulmanas e islamitas também são válidas porque há pessoas que as procuram e não podemos simplesmente fazê-las desaparecer. Mas estamos aqui para criar uma alternativa e queremos que esta mesquita se torne um espaço para as pessoas que realmente valorizam a diferença de opiniões. Não estamos aqui para julgar ou avaliar outras posições, mas para construir uma alternativa sólida a elas.

RFI - Se levarmos em consideração o quanto a Dinamarca está avançada em relação à igualdade de direitos entre os sexos, você não acha impressionante que somente agora o país tem sua primeira mesquita liderada por mulheres, enquanto isso já exista em outros países como a China, Estados Unidos e Canadá?
SK - É verdade, mas creio que isso é porque pouquíssimas pessoas sabiam que mulheres imames eram algo possível. Há também o fato de que o que estamos fazendo pode mudar o equilíbrio de forças numa sociedade. Vejo isso através da minha própria experiência. Meu pai, que eu considero um feminista, me disse que eu não poderia me tornar uma imame porque eu não sei recitar o Alcorão de cor e porque eu não uso um lenço para cobrir os cabelos. Mesmo sendo um artista e tão moderno, ele está preso a um pensamento tradicional. Hoje meu pai se orgulha do que estou fazendo, mas não tem sido fácil para ele depois que mais de dois terços dos amigos dele lhe viraram as costas porque não concordaram que sua filha se tornasse imame.
 

A imame Sherin Khankan (à dir.) e Sadia Bundgaard, frequentadora da mesquista.
A imame Sherin Khankan (à dir.) e Sadia Bundgaard, frequentadora da mesquista. Foto: Margareth Marmori

RFI - Como uma mulher pode se tornar uma imame em sua mesquita?
SK - Em primeiro lugar a pessoa precisa ter um mestrado em áreas como estudos islâmicos, árabe, religião ou teologia. Temos atualmente seis mulheres, incluindo eu, em processo de completarem sua formação para se tornarem imames. Todas nós temos um mestrado e em breve iniciaremos nossa academia para que possamos seguir 17 cursos de sufismo, Proteção Espiritual Islâmica (em inglês, Islamic Spiritual Care), árabe, filosofia islâmica, sobre as imames na Europa, sobre a condução da oração de sexta-feira, etc. Uma imame tem de ser treinada em Proteção Espiritual Islâmica porque é preciso ter habilidade para servir as pessoas da nossa comunidade. Aliás, 60 por cento do trabalho de um imame consiste em servir a comunidade. Na nossa mesquita ofereceremos esse serviço toda sexta-feira, depois das orações.

RFI - O que é exatamente Proteção Espiritual Islâmica ? É um conceito que vocês mesmos criaram?
SK - A Proteção Espiritual Islâmica é um horário que reservamos para uma conversa sobre problemas que um fiel enfrenta. Vamos usar métodos cognitivos e histórias do Alcorão para conduzir a conversa. Não vamos julgar ou avaliar e não é doutrinação, mas podemos usar a religião para aliviar a tristeza, por exemplo, de uma mãe que perdeu o filho. Algumas mulheres que têm nos procurado são muito religiosas enquanto outras não. Eu tive por exemplo, o caso de uma mãe e sua filha, que me autorizaram a mencionar o caso delas. Ambas são religiosas, mas a filha é bissexual e a mãe não conseguia lidar com isso. Eu usei o Alcorão para contextualizar o problema e isso as ajudou. A Proteção Espiritual Islâmica é algo universal no islamismo, mas se você só tem imames homens, somente eles serão responsáveis por oferecê-la, o que é problemático. Existem algumas questões sensíveis como perda de um filho e violência física ou mental, sobre as quais as mulheres preferem conversar com outras mulheres. Aqui, por exemplo, demos o divórcio a duas mulheres muçulmanas que já tinham procurado outras mesquitas, mas que tiveram seus pedidos recusados porque seus maridos se negaram a aceitar o divórcio. Na nossa mesquita as mulheres são ouvidas e recebem ajuda.

RFI - Esses homens respeitaram o divórcio emitido por vocês?
SK - Sim, porque nesses dois casos tínhamos documentação com evidências de que havia violência física contra as mulheres. Eles tiveram de aceitar. Além disso, os dois casos foram enviados ao Conselho da Lei Sharia de Londres, que também atestou o divórcio.  Nosso divórcio não tem valor jurídico porque, claro, na Dinamarca, seguimos a lei dinamarquesa. Mas as mulheres precisam do divórcio islâmico para se sentiram livres psicologicamente de seus maridos. Há quem questione a legitimidade religiosa do divórcio que concedemos, mas esse é um tipo de questionamento que não existe em relação a outras mesquitas. Nossa legitimidade é baseada no nosso conhecimento e nos serviços que oferecemos, mas, principalmente, no fato das pessoas nos procurarem. Ninguém tem poder a não ser que as pessoas lhes deem poder. Nós não teríamos legitimidade se as pessoas não viessem a nós.

RFI - A Mesquita Marian também celebra casamentos?
SK - Sim, já celebramos cinco casamentos com base em um contrato elaborado por nós. Esse contrato de casamento tem princípios básicos que incluem a proibição da poligamia, o direito das mulheres ao divórcio, a anulação do casamento em caso de violência física ou mental, e, em caso de divórcio, garantia de que as mulheres também têm direito à guarda dos filhos.  Na Dinamarca, a nossa é a única mesquita que oferece um contrato de casamento com todos esses direitos. Mas planejamos convidar outros imames para discutir esse contrato e tentar convencê-los a adotá-lo em suas mesquitas. Nosso objetivo é que esse contrato se torne padrão em todas as mesquitas do país.

RFI - Você acredita que a Mesquita Marian faz parte de uma tendência ou movimento global?
SK - Acredito que sim. Vejo nossa mesquita como parte de um movimento feminista maior. Lentamente vemos uma tendência global na qual inspiramos e também temos nos inspirado em outras mulheres e muçulmanos progressistas. Isso é uma tendência inevitável que aconteceria mais cedo ou mais tarde simplesmente porque somos metade da população mundial.

RFI - Você tem uma vida muito ocupada como palestrante, escritora, dirigente de uma organização não governamental, e estudante, além de ser mãe de quatro filhos. Você já se perguntou se, no plano pessoal, vale a pena se dedicar também à mesquita?
SK - Há algumas vezes em que me faço essa pergunta. Principalmente no início, foi tudo muito difícil porque tivemos de começar do zero. Meus filhos pagam um preço por isso e não tem sido fácil para meu marido. Mas ainda assim acho que vale a pena continuar. Sonho que nossa ideia se espalhe pelo mundo, inspire mulheres de outras partes do mundo e de outras religiões. Sonho com o dia em que haverá mesquitas dirigidas por mulheres em todos os países do mundo.

 

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