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Saúde em dia

Em livro, francês narra a dura decisão de abortar filho com Síndrome de Down

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Em “Pater Dolorosa”, o escritor francês Jérémie Szpirglas narra sua angústia diante da decisão de interromper a gravidez de um bebê com trissomia 21, uma anomalia genética que pode ser detectada em exames pré-natais. 

Jérémie Szpirglas descreve a diificil decisão de abortar uma criança portadora da Sindrome de Down no livro "Pater Dolorosa"
Jérémie Szpirglas descreve a diificil decisão de abortar uma criança portadora da Sindrome de Down no livro "Pater Dolorosa" (Foto: Taissa Stivanin/RFI Brasil)
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Na França, cerca de 96% dos pais que descobrem que seu filho será portador da Síndrome de Down optam pelo IMG (interrupção médica da gravidez) ou aborto terapêutico. No país, esta decisão é culturalmente aceita e não optar por ela causa até mesmo estranhamento. O procedimento difere do IVG, (Interrupção Voluntaria da Gravidez), instaurado por lei em 1975, que permite às mulheres abortar independemente das circunstâncias.

Em 2015, o escritor Jérémie Szpirglas e sua companheira se viram diante do dilema: o bebê, o segundo filho do casal, tinha a chamada trissomia do cromossomo 21, o que levou o casal a optar pelo aborto. Uma experiência que marcou Jérémie para sempre e que ele decidiu transformar em livro. Na obra, o escritor detalha a expectativa da espera dos resultados dos exames que confirmaram o diagnóstico, os meses passados entre idas e vindas no hospital e as dúvidas sobre a decisão tomada.

O olhar paterno, próximo e ao mesmo tempo impotente diante do sofrimento físico e psicológico da mãe, permeia as páginas do livro, que também aborda a questão do luto perinatal e da crise enfrentada pelo casal. O autor descreve, por exemplo, a decisão de sua mulher de ter um parto induzido no quarto mês de gravidez, extremamente doloroso, sem anestesia, e a dura etapa de velar e enterrar o filho, incinerado no cemitério Père Lachaise, além do sentimento de culpa por ter decidido, ao lado da companheira, colocar um fim na gravidez.

No texto, Jérémie também se questiona como teria sido a vida com um filho deficiente mental, que ele e sua esposa preferiram evitar que viesse ao mundo, como contou em entrevista à RFI Brasil. Hoje, ele e sua mulher têm três filhos, e o quarto está a caminho.

RFI – Como você avalia o atendimento diante de uma situação tão delicada? Em uma passagem do livro você conta, por exemplo, que o laboratório se recusou a fornecer o resultado impresso da amniocentese para que sua mulher pudesse dar continuidade ao processo.

Jérémie Szpirglas - É evidente que quando vivenciamos uma situação dessa, qualquer detalhe nos afeta profundamente. Nesse caso, são pessoas, na minha opinião, que não fizeram seu trabalho direito ou simplesmente não sabiam como fazê-lo. Em minha opinião, é mais uma questão de incompetência ou de distração que de má vontade.

RFI - E a questão médica?

JS - Na hora do procedimento, da interrupção da gravidez, há também gestos que são necessários do ponto de vista médico, mas que olhando de fora, podem parecer extremamente violentos, como a limpeza uterina. Eu estava ao lado quando ocorreu, e minha sensação é a de que estava ocorrendo um estupro. O médico que executou a limpeza de fato foi muito frio. Por outro lado, essa distância é necessária. Não é possível colocar afeto. Mas, de um modo geral, sentimos muita empatia e calor por parte dos profissionais.

RFI - Na França, a decisão de abortar uma criança que terá Síndrome de Down é bem aceita? Em nenhum momento vocês se sentiram julgados?

JS - Não temos nenhum problema moral com a questão. Quando eu e minha companheira discutimos o assunto, ficamos com um pouco de medo da opinião dos outros. Um medo infundado. Ninguém da nossa família, mesmo aqueles que pensamos que talvez pudessem colocar alguma questão moral em relação ao assunto. Ninguém nunca se mostrou contrário à nossa decisão e 100% dos nossos amigos disseram que teriam feito a mesma coisa.

RFI - Essa reação atenuou seu sentimento de culpa, que é bem presente no livro?

JS - O sentimento de culpa, infelizmente, permanece, mas não tem uma relação com a moral, é uma espécie de arrependimento, questionar se não podíamos ter guardado a criança, ou se não havia outra solução.Talvez pudéssemos tê-lo guardado, não sei. Mas a culpa existe, apesar da ausência de julgamento da parte dos outros. Talvez um dia conseguiremos supera-la.

RFI - O que o levou a contar sua história, com tantos detalhes, nesse livro?

JS - Eu tinha que escrevê-lo. Eu precisava tirar algo mais dessa experiência além dessa dor horrível. Eu nem me fiz essa pergunta, precisava escrever. Em relação à sinceridade do testemunho, com bastante detalhes, inclusive íntimos, ele vem do desejo de ajudar outros casais que estivessem passando pela mesma situação. Isso é certo. Durante todos esses meses, eu e minha companheira devoramos depoimentos, livros de psicólogos e teóricos do luto. Pensei comigo: “esse livro poderá ajudar”. Por isso não escondo detalhes médicos. Não há sentido para mim “romancear” essa vivência, mas há outras passagens no livro mais literárias. Não é uma receita do que deve ser feito. Cada pessoa deve encontrar internamente seus próprios recursos. Admiro muito as poucas pessoas que não tomam essa decisão.

RFI - Há também o olhar do homem sobre a questão?

JS - Sim. Nunca tive o sentimento que meu corpo gerou a morte, como minha companheira, o que é horrível. Mas tomei uma decisão, vivenciei uma perda, um sofrimento, o luto, e é importante que ele seja reconhecido.  Se esse sofrimento não é reconhecido, é como se eles não tivessem direito de viver seu luto. Por isso centrei o livro no casal e minha companheira é o personagem principal. As separações são frequentes depois desse tipo de problema. Não queria perder minha família e esse livro também serve para ajudar outras pessoas nisso, mesmo que não exista uma receita.

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