Acordo Mercosul-UE: franceses apostam na qualidade para enfrentar carne brasileira
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Na edição deste ano, o Salão Internacional da Agricultura da França virou palco de protestos contra o acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Os pecuaristas franceses se preocupam com a retomada das negociações entre os dois blocos e temem uma invasão da carne bovina sul-americana no mercado europeu, a preços mais baixos.
Para enfrentar a concorrência brasileira, argentina e uruguaia, os franceses apostam na qualidade da produção nacional, resultado de procedimentos rigorosos de rastreamento, alimentação sem transgênicos e uso reduzido de antibióticos.
Apesar dos protestos, os agricultores parecem se conformar com a assinatura do tratado, esperada para as próximas semanas. “Infelizmente, acredito que vai passar, porque quando a discussão chega a esse ponto é porque as coisas já estão bem avançadas nos bastidores. Estão falando muito nesse assunto, mas não é por isso que as coisas ainda poderão mudar”, disse Aurelien Bardini, especialista em inseminação bovina em Meurthe-et-Moselle, em referência aos recentes protestos de 20 mil agricultores em toda a França, contra o acordo.
Henri Peyrac, produtor da raça Aubrac, reconhece que a agricultura é apenas um dos variados setores visados pelo pacto, que vai reduzir ou acabar com barreiras alfandegárias entre o bloco europeu e o sul-americano.
“Honestamente, acho que será assinado, porque o que está em jogo para a Europa não é a questão agrícola, mas sim a industrial. Sabemos que é importante para a o setor automotivo e de infraestruturas, interessados nesses mercados da América do Sul, onde há muita coisa para ser feita”, afirma. “Acho que a questão agrícola terá servido apenas de barreira para ajustes.”
Diferencial: produção orgânica
As negociações no Paraguai devem se estender até o dia 2 de março. Se antecipando à eventual derrota, os produtores franceses já planejam a revanche: pretendem enaltecer a qualidade do rebanho nacional. Jean-Noël converteu sua produção em orgânica há dois anos – suas vacas são tratadas com medicação alternativa, como homeopatia, e comem apenas pasto natural, sem produtos transgênicos. Quando ficam doentes, os animais só recebem antibióticos em casos extremos, garante.
“Sou contra o acordo porque nós nos esforçamos para produzir uma carne e um leite de qualidade superior, em uma agricultura sustentável. Importar os produtos dessa forma, com normas totalmente diferentes das nossas, é incompreensível”, contesta o produtor de Pays de Loire. “É óbvio que a carne importada não poderá ter as mesmas exigências de produção que temos aqui. O governo atual nos incentiva a produzir de uma maneira mais respeitosa ao meio ambiente, à saúde e ao bem-estar animal, mas deixa entrar produtos que estarão em concorrência direta com a gente – e ainda por cima são ruins para os consumidores.”
Henri Peyrac segue a mesma lógica: para ele, a excelência da carne francesa será o diferencial no mercado, no dia em que as até 100 mil toneladas de carne do Mercosul forem autorizadas a entrar no bloco europeu sem barreiras tarifárias.
“Isso nos deixa com raiva porque é concorrência desleal. Não sou contra o livre comércio, afinal podemos exportar para a China e tantos países do mundo. Mas as regras têm de ser as mesmas”, explica. “Fica impossível nos mantermos competitivos, com tantas regras que temos de seguir e que gostamos de seguir, afinal somos apaixonados pela nossa terra e nossos animais. Teremos de convencer os consumidores a consumir menos, mas consumir melhor, e assim o produto francês não ficará mais caro para eles.”
Esclarecer consumidores franceses
Os agricultores reconhecem que, até o momento, perderam a batalha da comunicação – eles admitem que a maioria da população desconhece as regras sanitárias em vigor, que encarecem o produto francês.
“Nós erramos por não termos feito um trabalho de comunicação sobre por que a nossa carne é mais cara, mas por que a qualidade é tão superior. A nossa carne pode ser rastreada do início ao fim”, destaca Aurélien Bardini. “As autoridades sanitárias sabem exatamente quanto de antibiótico um animal tomou a vida inteira. Posso garantir que, ao consumir uma carne francesa, não há nenhum risco para a sua saúde: nós sabemos exatamente o que tem nela. Quanto à carne que virá da América do Sul, não saberemos nada.”
Claude Delhomme, produtor no Rhône, avalia que o consumidor francês tem cada vez mais consciência da importância de prestar atenção sobre a origem dos produtos e valoriza a produção nacional. Porém, ressalta que o setor bovino vai além do bife comprado no açougue e, quando se trata dos subprodutos, a preocupação é menor.
“Se os consumidores forem inteligentes e quiserem produtos mais respeitosos do meio ambiente e da saúde e, principalmente, valorizar os produtos franceses, não teremos por que temer a carne estrangeira. O problema é que há também toda uma gama de produtos, como as carnes que vão para a elaboração de pratos prontos, na qual a preocupação com a origem é bem menor”, lembra Delhomme.
Outros, como Gaec Camus, de Arnac La Poste, consideram que, no fim, o preço ainda é o fator determinante na hora da escolha, apesar da evolução dos hábitos de consumo no país.
“Acho que essa carne vai chegar mais barata aqui e os franceses vão querer comprá-la, pagando menos, por mais que ela tenha uma qualidade inferior”, pondera. “Até dentro da Europa, nem todo mundo tem o mesmo nível de qualidade do que nós. Temos uma fiscalização rígida e os outros países, não.”
Em contrapartida à liberalização da entrada da carne na Europa, a União Europeia pede uma flexibilização da regulamentação e das tarifas de exportação de leite, queijo e vinho para o Mercosul. As maiores interessadas, no entanto, são as montadoras de automóveis. As tarifas de exportação para o Cone Sul podem ser zeradas em oito anos.
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