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Teatro/Marionetes

‘Macunaïma Gourmet’ denuncia ‘apocalipse brasileiro’ no Festival Mundial de Teatros de Marionetes da França

Anti-herói do clássico modernista de Mário de Andrade, arredio e iconoclasta, Macunaíma é revisitado pela trupe brasileira Pigmalião, Escultura que Mexe em tom de denúncia e revanche contra o que os artistas chamam de “apocalipse brasileiro”. O espetáculo, que passará pela região de Paris ainda este ano, estreou na noite desta segunda-feira (23) em Charleville-Mézières com ovação do público francês num dos mais tradicionais festivais internacionais de bonecos do mundo.

Cena de "Macunaïma Gourmet", do grupo mineiro Pigmalião Escultura que Mexe, que realizou sua estreia mundial no festival francês nesta segunda-feira (23).
Cena de "Macunaïma Gourmet", do grupo mineiro Pigmalião Escultura que Mexe, que realizou sua estreia mundial no festival francês nesta segunda-feira (23). MACUNAÏMA GOURMET ©Hugo Honorato
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Da enviada especial a Charleville-Mézières

 “Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade (São Paulo) os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros”  (trecho de “Macunaíma", de Mário de Andrade)

Em, entrevista à RFI, o diretor Eduardo Félix, que assina o trabalho ao lado do experiente Eid Ribeiro, relata que Macunaïma Gourmet surgiu durante o processo de criação de outro espetáculo, chamado Brasil, bonequeiros sudacas expõem suas contradições para uma plateia francesa. “O lugar de fala foi tema de muitas discussões do grupo. Chegamos à conclusão que só poderíamos falar se deixássemos bem claro que onde estávamos falando. Acabei então me transformando em marionete, fizemos uma marionete minha em tamanho natural”, diz.

“Sudacas é um termo pejorativo para sul-americanos, usados por pessoas de língua espanhola, principalmente”, conta Marina Viana, atriz, manipuladora e assistente de direção do espetáculo. “Já incorporamos. A gente vai se apropriando das coisas e subvertendo seus sentidos”, diz Viana, autora de um dos textos mais expressivos do espetáculo, o “La Chute”, que traz, em outras referências, uma menção ao já clássico livro “A Queda do Céu”, do autor e xamã ianomâmi Davi Kopenawa.

Em Macunaïma Gourmet, que estreou durante a 20ᵃ edição do Festival Mundial de Teatros de Marionetes, em Charleville-Mézières, o lirismo irreverente de Mário de Andrade se transforma, literalmente, em “revanche” pop-política. Numa das cenas, o anti-herói Macunaíma é colocado em sistema de engorda química numa espécie de grande frigorifico brasileiro, antes de ser servido em pedaços ao patrão, um boneco gigantesco com feições que lembram Jair Bolsonaro.

“Querem violência?”, berra o ator e manipulador do protagonista. “Aí está”, diz, apontando para o gigantesco boneco de Wenceslau Pietro Pietra, o mítico vilão do clássico modernista. Mas, na versão do grupo Pigmalião, Pietra é destroçado no final por formigas gigantes, personagens cruciais no romance original. Rasgado em pedaços, a cabeça separada do corpo, o grand finale do “apocalipse brasileiro”.

Cena de "Macunaïma Gourmet", teatro de bonecos da trupe mineira "Pigmalião Escultura que Mexe".
Cena de "Macunaïma Gourmet", teatro de bonecos da trupe mineira "Pigmalião Escultura que Mexe". Daniel Moreira

O diretor ironiza quando perguntado se buscou alguma semelhança com o presidente brasileiro. “Imagina!”, exclama, rindo. “Tínhamos uma máscara do Michel Temer, que era um mordomo que entrava com a faixa presidencial e servia o vilão no final, tudo isso seria muito desprezível de colocar em cena. Por mais que o Temer fosse uma desgraça, ou a pré-desgraça, já era uma preparação para a ferrada que viria depois”, diz Félix. “Tem uma raiva, uma coisa muito esquisita. Não queremos sair [do Brasil], somos uma companhia engajada mesmo, por mais que exista censura, um monte de espetáculo sendo cancelado, penso que esta é a hora principal de estarmos aqui. Não viemos para entreter”, afirma.

"Gourmetização da sociedade"

Mas, para além da política, o espetáculo desconstrói tendências como a “gourmetização” da sociedade contemporânea, trabalhando sempre com uma metáfora do canibalismo, pedra fundadora revisitada do movimento antropofágico da década de 1920. “O que é esse consumo, essa desproporção absurda que tomaram os produtos gourmet, até na França”, lembra. “Somos explorados por quem? Quem come a nossa carne? Eu como a carne de quem? É sempre importante pensar em quem sustenta o nosso luxo”, diz Félix.

"O processo de criação deste espetáculo foi longo”, lembra Marina Viana. “Ele começa em 2016, que foi um ano marcante, ele passa 2017 e 2018. Houve uma queda, uma mudança no cenário político do país. Isso tudo nos afetou durante todo o processo. Ainda não digerimos tudo”, diz. 

O trabalho mistura diferentes técnicas do teatro de marionetes, como o boneco de fios e a manipulação direta. “É uma mistura, não existe uma técnica padrão neste espetáculo, como normalmente fazemos. Tem muita experimentação. A manipulação direta, por exemplo, é a que você segura diretamente no boneco, mas efetuamos misturas, tem boneco que eu manipulo que se encontra acoplado no meu corpo, e com uma antena para manipular a cabeça, que já é uma coisa da marionete de fios, por exemplo. Sabíamos apenas que nesse espetáculo queríamos bonecos em tamanho natural e o gigante do [vilão] Wenceslau Pietro Pietra”, detalha o diretor Eduardo Félix.

A diretora do tradicional festival de Charleville-Mézières, Anne-Françoise Cabanis, celebrou, em entrevista à RFI, a parceria com a trupe brasileira Pigmalião Escultura que Mexe. “Eles já apresentaram dois outros espetáculos no festival. Penso que esse artista brasileiro, Eduardo Félix, é como um chefe de trupe, como dizemos por aqui, existe toda uma equipe junto com ele. Ele me emociona muito, e tem uma força de caráter impressionante para defender a marionete e a marionete que ele deseja mostrar, além de ser uma força de resistência em relação a este momento político brasileiro”, afirma Cabanis.

“Foi importante para o festival lhe apoiar e lhe oferecer alguns meios para se expressar no espetáculo Macunaïma Gourmet, essa revolta contra o que se passa no Brasil”, completa a diretora do festival.

Os artistas da trupe Pigmalião Escultura que Mexe voltaram para os aplausos apos a apresentação brandindo uma faixa com os dizeres “Lula Livre”. “Como não falar disso? Como artistas, temos um lugar tão privilegiado de fala. Especialmente quando nos apresentamos fora do Brasil”, sublinha Félix.

“Sempre fomos meio censurados, meio malditos. O povo não espera isso [que fazemos] de um teatro de bonecos, a expectativa é outra. Mas achamos isso bom, o boneco tem esse poder. As pessoas emprestam uma ingenuidade ao boneco é uma oportunidade de se expressar”, diz o artista.

O espetáculo Macunaïma Gourmet terá duas apresentações especiais nos arredores de Paris, no sábado (28) em Saint-Germain-lès-Arpajons, e no dia 1° de outubro em Fontanay-sous-Bois.

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