Filme holandês de 1971 desbrava Brasil profundo com Jofre Soares e Ana Maria Miranda
Publicado em:
Ouvir - 06:48
João é um vaqueiro humilde, sério e trabalhador. Viúvo, ele se encanta por uma jovem de 19 anos. Casados, ele sofre por não poder satisfazê-la sexualmente e então decide “fazer fortuna” na Amazônia para, pelo menos, dar à mulher uma vida de menina rica. Mas os ciúmes alimentam sua alma.
Essa é a trama de João e a Faca, baseado no romance A Faca e o Rio, do maranhense Odylo Costa Filho. O holandês George Sluizer (1930-2014) ganhou de presente o livro e ficou encantado com a história, conta Anne Sluizer, viúva do cineasta. O autor era adido cultural em Paris e logo se encontrou com o cineasta e o convidou para conhecer o Brasil. Sluizer ficou três meses no Brasil e produziu quatro documentários sobre o Nordeste, o que deu as bases para o projeto de filmar João e a Faca.
Quase cinquenta anos depois, sobreviventes da saga se reuniram no Festival de Cannes para lembrar os velhos tempos e comemorar a exibição do filme na seção de Clássicos Restaurados. Em volta de um alegre drinque no pavilhão do instituto EYE do cinema holandês, estavam a atriz e escritora Ana Maria Miranda, o então assistente de fotografia Theo van de Sande e a produtora Anne Sluizer, lembrando as aventuras das filmagens.
Acidentes de percurso
“Pouco antes de embarcarmos, houve um incêndio que destruiu tudo na nossa produtora”, relata Anne Sluizer. “Consegui achar um roteiro queimado nas bordas, mas isso atrasou a viagem em seis meses”. Com pouco português na ponta da língua e com uma equipe de apenas cinco europeus, George Sluizer chegou ao Rio.
Os percalços continuaram, como enumera Anne Sluizer: malas e equipamentos extraviados, o produtor brasileiro que se retira do projeto por problemas com o Fisco e o ator principal doente. Jofre Soares foi chamado de última hora e se revelou melhor que a encomenda, vivendo um João sofrido, teimoso e ciumento.
Para Ana Maria Miranda, em seu primeiro filme, foi uma vivência extraordinária. “Ver um Brasil que eu não conhecia, o Norte, as festas, as vaquejadas, me tocava mais que interpretar”, diz, rindo. “Insegura, eu vi que minha única possibilidade era ser natural e foi o que fiz”, explica. “É um personagem lindo, pois representa a mulher brasileira, que sofre a violência doméstica, feminina”, conta Ana Maria, que também fez uma importante carreira literária, como obras como Boca do Inferno, prêmio Jabuti.
Filmagens
Apenas Ana Maria Miranda e Jofre Soares eram atores profissionais. O filme aproveitou os ambientes e personagens locais no Nordeste e Amazônia. O então assistente de câmera Theo van de Sande conta que as condições de filmagens foram dificílimas, pela falta de recursos. “Primeiro o equipamento ficou duas semanas extraviado. Você imagina o problema que era naquela época, por causa da temperatura, a pelicula estragava”, explica. “As cenas dos rodeios foram bem difíceis, com muito movimento. E, em seguida, tivemos que mudar de ator principal, já com cenas filmadas. Paramos tudo, para que George fosse buscar um outro ator e acho que foi uma ótica troca, pois Jofre Soares fez um personagem forte, quando ele grita é impressionante, que talento, ele não atua, ele sente.”
Hoje, van de Sande virou diretor de fotografia em Hollywood, acostumado a equipes de 40 pessoas. O diretor de fotografia principal, Jan de Bont, que não pôde vir a Canne, também ganhou renome, fotografando vários filmes, como Instinto Selvagem, antes de passar a dirigir sucessos como Speed, com Keanu Reeves e Sandra Bullock.
O derradeiro River Phoenix
Já George Sluizer, que morreu em 2014, é mais lembrado por Spoorloos, um thriller holandês que marcou historia. Ele fez uma refilmagem em inglês que foi um fracasso. Outro golpe do destino foi em 1993, quando Sluizer estava dirigindo o último filme de River Phoenix, e o ator, no meio da produção, morreu de overdose. Em 2012 ele conseguiu terminar Dark Blood com o material da época, 19 anos depois, e foi exibido fora de competição no Festival de Berlim, em 2013. É o único filme da carreira de Phoenix em que ele faz o vilão.
A versão restaurada foi feita em conjunto por Stoneraft Films b.v., EYE Filmmuseum e Haghefilm Digital.
NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.
Me registro