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Rendez-vous cultural

Mostra em Paris expõe cem anos de bonecas negras nos EUA

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Uma exposição na Maison Rouge, em Paris, traz uma coleção extraordinária de bonecas negras, feitas de pano, couro e madeira, nos Estados Unidos, entre 1840 e 1940. Esses raros objetos foram provavelmente, ou certamente, costurados com muitas histórias de opressão, racismo e violência.

Exposição "Bonecas Negras", na Maison Rouge, em Paris.
Exposição "Bonecas Negras", na Maison Rouge, em Paris. @ Patricia Moribe
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Tudo começou quando a advogada Deborah Neff, que vive em Nova York, encontrou uma boneca negra, antiga, de pano e couro, em uma feira de antiguidades em Atlanta, sul dos Estados Unidos, há 25 anos. Fascinada pela qualidade artística do objeto, ela passou a procurar outras bonecas negras em antiquários e brechós.

A coleção foi aumentando e hoje são cerca de 200 itens, de vários estilos, uns mais simples, outros de confecção extremamente apurada, com roupas de época, acessórios em miniatura. Os bonecos representam negros e negras de todas as idades, de idosos a bebês, passando por adolescente e crianças.

Coleção traz cerca de 200 exemplares de bonecos negros variados.
Coleção traz cerca de 200 exemplares de bonecos negros variados. @ Patricia Moribe

Fotos intrigantes

Diante da falta de documentação a respeito, mas consciente do enorme valor cultural e artístico de sua coleção, sete anos atrás Deborah Neff passou a buscar também imagens de época que apresentassem bonecas negras, para tentar compreender melhor o fenômeno. As fotos expostas em Paris mostram muitas crianças, brancas com bonecas negras e negras com bonecas brancas ou negras.

“Por dedução, podemos pensar que a grande maioria dessas bonecas foram feitas por afro-americanas, numa busca de representação própria, num contexto, por sua vez, bem conhecido, o da escravidão, da supremacia branca e da segregação. Ou seja, de uma sociedade branca, onde a beleza é branca”, diz a curadora francesa Nora Philippe.

Ela compara a qualidade de certas bonecas aos ‘quilts’, as colchas de retalhos patchwork, feitas em pontos bem curtos, bastante ligadas à tradição afro-americana. Para a curadora, as afro-americanas usaram os bonecos para trabalhar a própria representatividade e autoestima, à semelhança de seus filhos e da comunidade negra.

Foto de David A. Warlick, sem título, Marietta, Geórgia, 1891.
Foto de David A. Warlick, sem título, Marietta, Geórgia, 1891. @ Patricia Moribe

Presença "ausente" das babás negras

Muitas fotos da coleção mostram crianças brancas agarrando afetuosamente as bonecas negras. Seria uma ligação de afeto que as crianças brancas demonstram em relação à babá negra que os criou? Porque lembram a pessoa sempre presente, amorosa e serviçal? Porque sendo de pano eram mais agradáveis de se agarrar do que as delicadas bonecas de porcelana? Mas, então, por que essas mesmas crianças brancas acabam se tornando, em geral, adultos racistas, virando de ponta-cabeça a relação que tinham antes com aquela que lhes deu de mamar, que os ensinou a andar e a comer? Essas são algumas das questões que surgem diante de imagens tão ricas, mas sem muitas respostas.

“As fotos que Deborah Neff encontrou são as que a história da fotografia conservou. Podemos sentir a presença 'ausente' das babás negras que, por afeto, estratégia, ou preocupação em se representar, fabricavam essas bonecas. São imagens muito complexas. As bonecas eram um laboratório de representação racial para as crianças americanas”, diz a curadora.

Algumas bonecas usavam forma branca no interior.
Algumas bonecas usavam forma branca no interior. @ Patricia Moribe

“Cadê nossa boneca?”

Num país tão miscigenado como o Brasil, onde negros e pardos representam 53,6% da população, segundo dados do IBGE de 2014, a representatividade dos negros como consumidores é algo recente, principalmente em se tratando de produtos cosméticos específicos.

Mas no mercado de brinquedos online, a presença de bonecas negras é ínfima: apenas 3%, segundo uma pesquisa feita pela ONG Avante, que promove a campanha de conscientização “Cadê Nossa Boneca?”, com página no Facebook. A ideia surgiu quando três amigas - Ana Marcílio, Mylene Alves e Raquel Rocha – participaram de uma arrecadação de brinquedos doados. As bonecas eram todas eram brancas. Assim nasceu o projeto, sem ligação com empresas do segmento de brinquedos e sem fins lucrativos.

Lúcia Makena e suas bonecas.
Lúcia Makena e suas bonecas. Facebook/Espaço Cultural Bonecas Makena

Chamado dos ancestrais

Já a pedagoga Lúcia Makena, de São Paulo, é bonequeira, e faz bonecas negras artesanais há quase 18 anos. A atividade começou de forma casual, quando se deparou, sem querer, com uma revista com uma boneca negra na capa. “Comprei na hora, por curiosidade. Hoje acho que foi um chamado dos ancestrais”, diz Lúcia.

“Comecei a fazer para as filhas, levava para a escola e a produção tomou outras dimensões. Mas não é o ato capitalista de vender que me interessa”, explica a bonequeira. “Eu conto uma história, é importante para nós, pessoas negras, termos essas bonecas como referência. E para as não negras como uma forma de minimizar a questão do racismo, que está implementado no sistema”, acrescenta.

O nome “Makena”, que Lúcia Regina Gomes da Rocha adotou para si e para as suas bonecas, quer dizer “a feliz”, e vem do Quênia.

Foto anônima, feita no estúdio Burnham, de Norway, estado de Maine, por volta de 1870-1885.
Foto anônima, feita no estúdio Burnham, de Norway, estado de Maine, por volta de 1870-1885. Ellen McDermott, New York City

Filme de testemunhos

A curadora Nora Philippe é a diretora do filme que é mostrado no subsolo da exposição. Esse foi aliás a semente de todo o projeto, pois ela viu um livro em Nova York, em 2016, a respeito da coleção, e decidiu fazer um filme, que hoje abarca essa exposição de peso.

Respire fundo, são depoimentos de negras oprimidas, preciosos relatos de escravas, lidos por negras livres de hoje. Elas contam como se sentiam, como eram violadas, como eram tratadas. No final, a escritora Maya Angelou (1928-2014), umas das vozes mais poderosas do movimento de resistência negra, lê um de seus poemas mais conhecidos, “Still I Rise” (Mesmo assim me levanto), que começa com o seguinte verso:

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I’ll rise. (...)

Tradução livre:

Você pode contar a minha história
Com suas mentiras tortuosas e amargas
Você pode me arrastar na sujeira
Mas, mesmo assim, como o pó, vou me levantar

Foto de J.C. Patton, sem título, Indianápolis, Indiana, cerca de 1915.
Foto de J.C. Patton, sem título, Indianápolis, Indiana, cerca de 1915. @ Patricia Moribe

A exposição “Bonecas Negras, a coleção de Deborah Neff” fica em cartaz na Maison Rouge, em Paris, até 20 de maio.

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