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Cinema/ preconceito

Antônio Pitanga e a polêmica do Oscar: “No Brasil, personagem negro nem tem família”

Desde o anúncio da lista de indicados ao Oscar, o fato de que nenhum ator negro vai concorrer à prestigiosa estatueta dourada, pelo segundo ano consecutivo, reacende o debate sobre a falta de diversidade no tapete vermelho de Hollywood. Em protesto, e o diretor Spike Lee e o casal de atores Will Smith e Jada Pinkett Smith vão boicotar o evento. Mark Ruffalo, indicado a melhor ator coadjuvante, cogita não comparecer à cerimônia.

Ator Antônio Pïtanga constata que, no cinema e na televisão brasileiros, atores negros não têm as mesmas oportunidades que os brancos.
Ator Antônio Pïtanga constata que, no cinema e na televisão brasileiros, atores negros não têm as mesmas oportunidades que os brancos. Ganga Zumba Produções
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A RFI convidou o ator Antônio Pitanga, um dos maiores nomes do Cinema Novo brasileiro, para analisar essa realidade no meio cinematográfico e nas telenovelas. “No Brasil, o personagem negro não tem nem família”, afirma.

RFI: O que você acha da campanha Oscars So White, Oscars tão Brancos, que pede o boicote à principal premiação do cinema, por não ter nenhum negro entre os 20 atores que disputam a estatueta?
Pitanga: É estranho, não é? O cinema é a arte mais democrática e por isso que é tão mágico. A presença negra na literatura e na dramaturgia sempre foi maciça. Nos trabalhos que têm sido feitos desde os irmãos Lumière e o início do cinema, tem-se uma presença muito grande dos negros nos musicais, nos filmes do Sinatra com Sammy Davis Jr. É estranho isso nos Estados Unidos e nos países africanos, que estão produzindo grandes filmes, além do Brasil, onde tem um percentual alto de negros fazendo cinema. É impossível que a gente esteja fazendo o pior cinema do mundo. Até o diretor mexicano [Alejandro González Iñárritu] está na primeira fila, ganhando todos os prêmios. Eu acho louvável se começar a colocar a boca no trombone, afinal que tipo de julgamento é feito pelos críticos do mundo inteiro, que não veem o cinema negro? Quando fazemos festivais aqui no Brasil, sempre reclamamos: onde está o olhar negro? Tem filme africano, filme americano, caribenho. Mas “cadê” esses negros? Não existem?

A atriz Woopi Goldberg se opôs ao boicote e disse que está cansada de ter esse debate a cada ano. Mas ela reclamou que a discussão sobre o lugar dos negros do cinema só aconteça uma vez por ano, durante o Oscar. E você, também acha que a situação evolui muito devagar?
Muito devagar. Mas eu não estarei cansado até morrer, enquanto não eu vir essa democracia racial se concretizar. Ela é um mito que, na verdade, não existe. Eu gostaria de saber quantos por centro de negros estão entre os críticos que julgam os filmes do Oscar.

Noventa e três por cento dos integrantes da Academia das Artes e das Ciências do Cinema ainda é composta por brancos.
É por isso que não podemos jamais dizer que estamos cansados de lutar.

Como você vê essa realidade no Brasil, em relação às premiações brasileiras? E quanto aos papéis destinados aos negros no Brasil, não só no cinema como nas telenovelas, que atingem a um público bem maior?
Vejo com as mesmas dificuldades. O que acontece lá espelha aqui. Aqui, o buraco é ainda mais embaixo ou, como dizia a Rita Lee, é bem mais em cima. O padrão de sucesso é louro, alto e de olhos azuis. Proporcionalmente, você não tem negros na dramaturgia brasileira. Os atores negros entram de pano de fundo e, quando aparece um Lázaro [Ramos], uma Camila [Pitanga], uma Taís [Araujo], acabou. Não tem mais lugar para um Milton [Gonçalves], um Pitanga, um Haroldo Costa. São só os jovens que estão aparecendo, com certeza graças a muitas das nossas lutas. Na dramaturgia, você pode ver um Tarcísio Meira com um filho Tony Ramos, com um neto Edson Celulari. É um caminho natural, que acontece quase normalmente. Eu comecei antes do Tarcísio Meira, mas os espaços que ele teve foram muito maiores do que os meus. É claro que não é um problema dele: é um problema do sistema.

Você não tem acesso aos mesmos personagens que os atores brancos?
Não, porque sou o “ator negro”. Quando o dramaturgo escreve, ele pensa no mundo dele. E eu não estou no mundo dele. Eu entro como empregado, como serviçal, ou quando o escritor é muito avançado, ele coloca uma família negra. Mas em geral, colocam o ator negro sem família mesmo. Já o Tarcísio, o Tony Ramos, a Fernanda Montenegro sempre vão ter família. Quando chamam um negro, é para ficar em algum gueto da novela. Eu sou um ator, eu não sou um ator negro. No momento em que, na dramaturgia, só existe espaço para o “ator negro”, é porque há alguma coisa de muito errada. Eu vou nas favelas, nas comunidades, nas esquinas, nas praças, nas praias e encontro o Brasil. Vejo negros, mulatos, brancos. Mas quando você vai para a tela, para superexposição, em um trabalho que mexe com a autoestima nos lugares mais longínquos, no Maranhão, em Pedreira, no interior do interior… Tem aquela mãe que olha para o Lázaro na TV, a Camila, a Taís, e diz: “eu quero que o meu filho esteja ali”. Ou “quero que o meu filho seja uma Benedita da Silva”. Mas não tem. Quantos políticos negros têm? De 513 deputados, quantos negros? A desproporcionalidade americana é a mesma aqui.

Que análise você faz da própria carreira, sob esse aspecto? Entre os mais de 70 filmes que você fez, em quantos foi protagonista? E em quantos fez papéis que colocassem o negro em uma situação de inferioridade em relação aos personagens brancos?
Eu sempre trabalhei sob esse viés: sou um ator. Por isso, fui prestigiado, como também fui castigado. Deixei de fazer grandes papéis. Ninguém diz na minha cara, mas eu sei que é isso. Eu deveria estar bem melhor, porque eu sou um dos caras que começou o Cinema Novo e inaugurou uma maneira de interpretar. Se eu não tivesse a minha produtora, produzindo as minhas coisas.. Mas é difícil. Faz 10 anos que tenho captar para fazer Malês, uma história negra, que acontece no norte da África, dos negros muçulmanos que vêm para a Bahia antes da chegada de Dom João 6º. Esse é o maior levante que aconteceu na história desse país, feito por negros para tomar o poder. Negros do candomblé, do catolicismo, contra o regime da escravidão. Estou há 10 anos tentando esse financiamento e não consigo. Tenho um dos melhores produtores do Brasil, um elenco fantástico, o Seu Jorge, o bam-bam-bam das trilhas sonoras, que fez Cidade de Deus. Tenho tudo isso, mas “cadê” o financiamento? Dá para desconfiar disso, não dá?

E como é a realidade para o ator negro que já não é mais tão jovem?
O Tarcísio, o Tony, o Fagundes, a Fernanda, todos vão aparecer com os seus filhos, com os seus netos, em papéis de senhores bem sucedidos que não cabem à gente. As pessoas vão envelhecendo por conta da falta do exercício da profissão. Nada mais trágico para um artista do que ser esquecido. Tivemos o Antônio Pompêo, em que aconteceu exatamente isso. Foi um cara que fez grandes e lindos trabalhos no cinema, na televisão e no teatro, mas você só ouviu falar dele agora porque ele morreu. Ele estava esquecido desde 2012. Ele era um ator maravilhoso, que fez Xica da Silva, Quilombo, Xangô de Baker Street. É terrível. Isso passou como se fosse uma coisa corriqueira, mas não é. A gente está vivo, de pé, firme, e estamos vendo essa carruagem passar - mas não estão nos levando.
 

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