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Saúde em dia

Vinho: patrimônio cultural francês ou porta de entrada para o alcoolismo?

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O vinho representa o segundo setor de exportação da França e seu consumo reúne aspectos culturais, econômicos e políticos. Até mesmo o presidente francês, Emmanuel Macron, declarou recentemente que toma duas taças por dia. Segundo ele, o vinho não influencia de maneira tão nefasta o comportamento dos jovens quanto os destilados e a cerveja. Mas, afinal, o vinho é de fato menos perigoso do que as outras bebidas alcoólicas?

Vinhas do Chateau Fontbaude, que produz o vinho Côtes de Bordeaux Castillon, em 23 de outubro de 2017, em Saint-Magne-de-Castillon, no sudoeste da França.
Vinhas do Chateau Fontbaude, que produz o vinho Côtes de Bordeaux Castillon, em 23 de outubro de 2017, em Saint-Magne-de-Castillon, no sudoeste da França. MEHDI FEDOUACH / AFP
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A afirmação de Macron indignou um grupo de pesquisadores franceses, apesar da declaração da ministra da Saúde, Agnès Buzin. Na tentativa de apaziguar a polêmica e a posição questionável do chefe de Estado francês, ela lembrou que o vinho é “um álcool como qualquer outro”.

Em uma tribuna publicada em março no jornal Le Figaro, dez especialistas também lembraram que a toxicidade do álcool está diretamente ligada à quantidade ingerida, independentemente de seu teor. De acordo com eles, o alcoolismo mata cerca de 50 mil pessoas por ano na França e o vinho representa cerca de 60% do consumo.

Em sua declaração, Macron também afirmou que não vai endurecer a lei Evin, promulgada em 1991, que limita a publicidade das bebidas alcoólicas que influenciam principalmente os mais jovens. Uma preocupação a mais para os representantes da saude pública, que lutam contra o poderoso lobby da indústria do vinho na França e dos milionários produtores e proprietários dos “châteaux” que produzem os milésimos mais cobiçados do mundo.

O psiquiatra Xavier Laqueille, chefe do setor de tratamento de drogas e outras dependências químicas do hospital Sainte Anne, um dos mais renomados da capital, conversou com a RFI Brasil sobre o tema.

Segundo ele, a chamada “cultura do vinho” pode levar a um consumo excessivo. Ele explica, basicamente, que o alcoolismo se apresenta de duas maneiras: nas bebedeiras de final de semana, que se repetem e a longo prazo podem acabar gerando dependência, ou no consumo frequente de álcool para aliviar um mal-estar psíquico ligado à uma doença mental. Ambas exigem tratamento e podem desencadear quadros diferentes, dependendo do paciente.

O psiquiatra francês Xavier Laqueille, chefe do setor de tratamento de drogas e outras dependências químicas do hospital Sainte Anne, em Paris
O psiquiatra francês Xavier Laqueille, chefe do setor de tratamento de drogas e outras dependências químicas do hospital Sainte Anne, em Paris RFI/ T. Stivanin

“A questão é complicada na França. Somos um pais de tradição vitícola. De uma maneira geral, a mensagem é 'beba com moderação o vinho e os destilados são mais perigosos para a saúde'. Trata-se de um posicionamento cultural. Nossa posição, como médicos, é complicada”, relata.

Segundo ele, como o importante é a quantidade consumida, todas as bebidas são iguais. “O álcool é perigoso. Traz complicações digestivas, hepáticas, neurológicas, psiquiátricas, sociais e profissionais”, lembra o psiquiatra. Ele diz também que a maioria dos pacientes alcoólatras procuram tratamento “tarde demais”.

“Esses pacientes sabem que não poderão nunca mais tomar uma taça de vinho na vida. É algo difícil de aceitar, e é verdade que essa proximidade do produto, no caso do vinho, facilita as recaídas de uma certa forma. Cocaína ou heroína, por exemplo, não são produtos que se encontram tão facilmente, assim como a maconha. Em relação ao vinho, há publicidade por todos os lados, e isso desperta a vontade de consumir”.

O médico reconhece, entretanto, que as bebidas de absorção mais rápida, como os destilados, viciam com mais facilidade, principalmente se começam a ser consumidas na adolescência. Ele também lembra que, há 50 anos, o teor alcoólico do vinho era bem menor, em torno de 7% ou 8%, e que hoje ele chega a 13% ou 14%. No passado, existiam até mesmo os chamados “vin de soif” (vinho para matar a sede, em tradução livre), com menos álcool, consumidos sem moderação, principalmente por trabalhadores rurais que passavam o dia nas plantações.

Bom para o coração, ruim para o fígado

Quem nunca ouviu que beber vinho faz bem para o coração? Essa informação, por incrível que pareça, é verdadeira, como explica o psiquiatra francês. O vinho possui antioxidantes e outras substâncias que ajudam a regular o colesterol, mas não impedem a destruição do fígado pelo álcool.

“Temos uma tradição na França que defende que pode haver um consumo mínimo tolerável. Mas isso é uma questão política, e não de saúde pública. Sabemos que o consumo de 2 ou 3 taças por dia faz com que o risco de câncer seja mais importante”, diz. “O debate não está no campo da Medicina, ele é principalmente cultural e politico”.

O degustador profissional e produtor de web documentários sobre vinhos, Wandel Rocha, radicado na França, acredita que o vinho não é o principal responsável pelo alcoolismo na Europa e no Brasil.

“A porta de entrada para o alcoolismo é certamente a cerveja. São maiores anunciantes da TV e de qualquer mídia. A exposição incitação ao consumo de alcool é muito mais arriscada na cerveja do que no vinho. Na França, a lei Evin enquadra com muito rigor qualquer apologia ao consumo de álcool”, declara. “No Brasil as leis são mais flexíveis e, isso sim, representa um grande perigo de saúde pública”, avalia.

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