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Vik Muniz: “Depois do modernismo, virou tabu falar de religião em arte”

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“Imaginária" é o título da exposição que o célebre artista brasileiro Vik Muniz apresenta, pela primeira vez na Europa, na Collection Lambert, em Avignon, no sul da França. A mostra é uma releitura de famosas telas de santos feitas por mestres da pintura. A partir de um trabalho de colagem – que o artista tem desenvolvido nos últimos anos – Vik recria, à sua maneira, imagens históricas da arte sacra. A exposição está sendo exibida simultaneamente no Museu de Arte Moderna de Salvador, na Bahia.

Vik Muniz em seu estúdio em Nova York, trabalhando na série Handmade.
Vik Muniz em seu estúdio em Nova York, trabalhando na série Handmade. Vik Muniz - Ph. Marco Anelli, 2018
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Enviada especial a Avignon

Mais uma vez, o artista utiliza ícones familiares ao público para questionar a ideia da representação na arte e criar um diálogo com o espectador. O resultado é uma série de 19 obras que são grandes mosaicos formados por milhares de pequenas imagens. Com essa série, Vik confessa, em entrevista à RFI, abordar um “conflito pessoal de ser um artista contemporâneo, trabalhando com arte conceitual no século 21, e conciliar isso com sua bagagem de arte sacra”, que faz parte de sua formação.

O espectador se depara com dois movimentos quando contempla uma das obras da mostra de Vik Muniz: ele vê primeiro a grande imagem bem colorida de um santo, como a de São Sebastião, de José Ribera ou São João Baptista de Caravaggio – que fazem parte do imaginário coletivo - e em seguida se aproxima do quadro e começa a reparar milhares de “pequenas distrações”, como define o artista, que são as pequenas imagens que não têm nada a ver com a arte sacra e que formam um todo surpreendente.

“Eu procuro sempre usar arquétipos com os quais o espectador tem alguma familiaridade. Parece que ele viu aquilo antes, e por isso mesmo ele já vem com a impressão formada daquilo que está vendo. E, num determinado momento, ele vê que não é bem aquilo que ele pensava, que ele está sendo traído de certa forma e passa então por uma adaptação entre aquilo que ele imaginou e o que está acontecendo realmente. Isso provoca uma conversa entre a obra e o espectador e constrói uma espécie de conhecimento visual que a gente está tentando alcançar” – explica o artista.

“Eu não sou um comprador de ideologias prontas”

A técnica de questionar a relação entre a realidade e a representação e utilizar para isso obras primas da história da arte é o ponto de partida da trajetória artística de Vik Muniz, conhecido internacionalmente pela utilização de materiais pouco convencionais como nas séries “Crianças de açúcar” ou “Imagens de Chocolate”. Mas para mostrar essa série de santos revisitados, Vik esperava um contexto para isso, já que galerias e curadores de arte contemporânea têm um certo distanciamento com temáticas ligadas a religião.

“A história da arte está muito ligada com a história da religião. No entanto, depois do começo do século 20, depois do período modernista, parece que virou um tabu você falar de religião em arte ”- lamenta ele. «Quando você chega no contexto do modernismo e pós-modernismo, o artista, o intelectual, quase que por obrigação, tem que ser ateu e comunista. Eu não sou nenhum dos dois ”- acrescenta ele.

Alegando não ser “um comprador de ideologias prontas, muito pelo contrário”, Vik insiste no fato da necessidade de um artista trabalhar com fé, “trabalhar com a ideia do acreditar”. E longe dos dogmas que regem a arte contemporânea, ele se define como um artista conceitual que tem uma relação com religião muito profunda, mas também muito aberta. “Eu gosto de religião com um todo, eu a estudo, eu adoro esoterismo, gosto muito de teologia em geral. E acho que acreditar é muito importante” - ressalta.

Para ele, essas imagens de santos tem uma complexidade incrível, pois questionam a “ideia da fé e da dificuldade em acreditar em algo”, no momento em que o seu imaginário está tão poluído, tão permeável à uma quantidade excessiva de referências visuais. “A ideia da fé, do crer é uma particularidade da nossa espécie. Eu acho muito interessante como a gente é amparado por essas pessoas (os santos), cuja vida, a fé, transcenderam a ideia do instinto de sobrevivência e como isso nos inspira”- afirma.

“Imaginária” começou em uma capela

O artista afirma que há muito tempo já tinha começado a trabalhar com imagens de santos, mas não tinha o contexto para mostrá-las. A princípio, ele não queria expor essas obras em galerias ou museus e achava que era algo que não interessava muito os curadores de arte contemporânea. No final do ano passado, surgiu a boa oportunidade: uma creche para 500 crianças carentes, ao lado da Capela Santa Ignez, na Gávea, no Rio de Janeiro, perto de onde ele mora, estava ameaçada de fechamento.  Vik conhecia muito bem o local, pois havia se casado e batizado os filhos nessa Capela.

Rodeada de favelas como Rocinha, Vidigal e Parque da Cidade, o número de batizados e casamentos na Capela haviam diminuído muito nos últimos anos, por questões de segurança e consequentemente a creche anexa estava com dificuldades financeiras para atender a população da região. O artista propôs então realizar em dezembro de 2018 a exposição “Imaginária” na Capela. O sucesso foi impressionante, diz ele. “Não só salvamos a creche, como fizemos uma mostra incrível”, diz ele, lembrando de filas enormes de pessoas querendo ver as obras.

A exposição interessou tanto que já viajou para Tóquio, Avignon e Salvador da Bahia. E deve ser apresentada ainda em Porto Alegre e Lisboa. Vik Muniz está atualmente trabalhando a partir dessas imagens, com a Biblioteca do Vaticano, para o “Sínodo da Amazônia” que acontece em outubro próximo. É possível que a mostra seja apresentada em uma Igreja em Roma.

“É bonito você ver pessoas que vem ver uma mostra mesmo sem nenhuma experiência em arte contemporânea, pessoas que não visitam museus. Eles vêm por causa do tema, porque religião tem um apelo incrível. É uma mostra que acaba interessando pessoas que gostam de arte contemporânea e outras que gostam de arte sacra”. O artista diz adorar a ideia de trabalhar para um público diferente, distante do universo da arte contemporânea. “Trabalhar sempre com um público específico, é muito chato. Quando você trata de temas mais abertos, você também convida as pessoas a compartilhar esse mundo muito interessante que é o da arte contemporânea”- ressalta.

Santos sincréticos e santos modernos

Quando começou a trabalhar com essas imagens sacras, Vik começou a descobrir santos que não apareciam em telas famosas. Por exemplo, ele não sabia da fé enorme que as pessoas têm em Santa Terezinha, uma santa moderna, do século 20, e que não tem referências na história da arte. O mesmo aconteceu com Santa Rita de Cássia ou Santa Luzia, que nunca foram realmente bem retratadas na pintura. Ele teve que recorrer às imagens dos “santinhos” de igrejas ou às esculturas existentes.

Outra peculiaridade são os santos negros, como São Benedito, que na maioria dos casos não aparece muito negro nas imagens renascentistas ou dos séculos 17 e 18. “Eu fui encontrar uma imagem de um São Benedito negro realmente numa escultura”- relata. A sua relação com o tema foi se expandindo à medida em que ele começou a entender a devoção das pessoas. “Eu comecei também a tomar certas liberdades”- acrescenta.

Para a exposição em Salvador, Vik trabalhou com os chamados “santos sincréticos” que têm correspondentes no culto afro-brasileiro, como Santa Bárbara ou São Lázaro. Aos poucos, o artista foi adaptando cores e recortes de revistas de acordo com a personalidade do santo – diz ele. Por exemplo, São Tomaz de Aquino, é um santo intelectual, faz parte dos “santos filósofos”. Vik diz que reservou uma cor especial para ele, diferente da pintura original. “Eu tenho uma afeição por ele e o pintei como eu o vejo”- explica.

Vik termina a entrevista dizendo que a “exposição está linda e que ele está muito orgulhoso. “E minha mãe está mais orgulhosa ainda, porque ela é muito religiosa. Ela está feliz da vida com essa mostra! ”

Sucesso em Avignon

Para o curador da exposição na Collection Lambert, Stéphane Ibars, “Imaginária” marca o retorno de Vik Muniz a esse museu, onde ele realizou uma retrospectiva de grande sucesso em 2011-2012, atraindo cerca de 40 mil visitantes e um público bem diverso. “A obra de Vik é fruto de uma verdadeira pesquisa sobre nossa relação com a imagem, com a sua difusão e a sua essência no mundo contemporâneo”.

Segundo curador, dessa vez o artista deu um passo mais audacioso, e “na medida em que a arte contemporânea se transformou em um fetiche e quase substituiu, para muita gente, nossa relação com a religião, ele se interessa pelo espiritual na arte, o que não é muito frequente hoje. E partindo de sua relação espiritual na arte - como um artista brasileiro, é preciso ressaltar - ele vai nos falar mais uma vez de nossa relação com as imagens e o poder que elas têm sobre nós. Ele faz isso de maneira inesperada, utilizando referências religiosas, recortadas de revistas, mas também referências da sociedade de consumo”.

“O que eu gosto muito na obra dele, diz Ibars, é que ele consegue produzir, como os grandes mestres, a sensação do tempo que para. E atualmente nós precisamos disso, com essa corrida desenfreada à imagem, ao consumo. E quando você entra numa exposição dele o tempo para, você passa horas reconhecendo, contemplando, descobrindo e reconstruindo a sua relação com a imagem.

“Imaginária” de Vik Muniz pode ser vista na Collection Lambert em Avignon até 29 de setembro de 2019. No Museu de Arte Moderna de Salvador (MAM-BA) a exposição fica em cartaz até 31 de agosto de 2019.

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