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Brasil/ Bolsonaro

Política externa nos 100 primeiros dias de Bolsonaro provoca danos à imagem do Brasil

A RFI ouviu dois especialistas para analisar o desempenho do atual governo brasileiro: Peter Hakim, presidente emérito do Inter-Americain Dialogue de Washington, e o embaixador Rubens Ricupero. Hakim vê muita “contradição” na política externa brasileira, devido à “agenda ideológica do governo”. Ricupero diz que, “apesar do papel de moderação desempenhado pelos militares, esse governo vem confirmando as piores expectativas e a imagem do Brasil já está muito afetada.”

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante encontro com o presidente dos EUA, Donald Trump, na Casa Branca, em Washington (EUA).19/03/19
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, durante encontro com o presidente dos EUA, Donald Trump, na Casa Branca, em Washington (EUA).19/03/19 Alan Santos/PR
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Os 100 primeiros dias do governo Bolsonaro foram principalmente marcados por uma grande movimentação diplomática, com três viagens internacionais do presidente aos Estados Unidos, Chile e Israel, e pela crise na Venezuela.

Peter Hakim salienta que a ação de Brasília é pautada por três agendas: a interna, com foco na economia, a ideológica e a de maior aproximação com os Estados Unidos. O presidente emérito do think tank Inter-Americain Dialogue acha que os ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro, têm talento, mas avalia que o governo está enfrentando grandes dificuldades por falta de experiência e por conta do comportamento do presidente.

“A agenda ideológica cria confusão, e o governo entra em contradições. Por exemplo, por um lado defende a democracia na Venezuela, por outro lado aplaude o governo Pinochet, no Chile, o Stroessner, no Paraguai, e celebra a época militar no Brasil. Essa política exterior é uma complicação. O Brasil quer se alinhar com os Estados Unidos, mas depende da China, seu maior parceiro comercial”, analisa Hakim.

Peter Hakim, presidente de honra do Inter-American Dialogue, entidade sediada em Washington
Peter Hakim, presidente de honra do Inter-American Dialogue, entidade sediada em Washington OcidentalInter-American Dialogue/Divulgação/ ebc agência Brasil

Esse alinhamento com Washington, que pode gerar uma certa confiança nos mercados neste período de incertezas, marginaliza no entanto outros países. Na opinião de Hakim, essa posição vai contra a história recente da política exterior brasileira: “O Brasil sempre teve orgulho e foi reconhecido mundialmente como tendo uma política exterior independente, autônoma, que estabelecia relações com países distintos como Jordânia e Israel, ou palestinos e israelenses, ou com China e Europa, etc. Se alinhar com os EUA, e especialmente com o governo de Trump, que tem uma visão bastante especial, cria uma certa incerteza sobre o futuro de como isso vai durar até o próximo governo do Brasil”.

O especialista lembra que o Brasil é historicamente “amigo” dos Estados Unidos, mas que sempre manteve uma “distância do país em termos econômicos, de comércio, direitos humanos, relações com outros países”. Ele ressalta que o governo vai ter que fazer opções e que por enquanto, fora a agenda ideológica, “não há uma política óbvia”.

Previsões negativas se confirmam

No momento da posse de Bolsonaro, em janeiro, o embaixador e professor da Faap Rubens Ricupero, previu que o novo presidente brasileiro iria se alinhar à doutrina de Trump, iria rejeitar o multilateralismo e a luta contra o aquecimento global, além de ter uma atitude mais pragmática com a China. Cem dias depois, com exceção da posição sobre a China, que foi moderada após pressões do agronegócio, a avaliação que ele faz é ainda mais negativa.

“Por exemplo, a escolha do ministro das Relações Exteriores foi por causa de um critério de uma pessoa de uma ideologia de extrema direita. A visita aos Estados Unidos foi toda marcada por essa ideologia, da mesma forma que a ida a Israel. Em todos os outros temas, o Brasil mudou de posição. Passou a votar contra os palestinos no Conselho de Direitos Humanos de Genebra, de uma forma até muito isolada nesta posição. Países de orientação semelhante ao Brasil, como Chile e Itália se abstiveram. Em todos os setores, esse governo vem confirmando as piores expectativas, não só em política externa. Em educação é um desastre, em todo o setor de políticas de promoção de igualdade entre mulheres e homens, em relação às terras indígenas, a insensibilidade ao meio ambiente”, enumera o ex-ministro da Fazenda, afirmando que este é um momento triste da orientação externa e interna do Brasil”.

Como Peter Hakim, Rubens Ricupero, que durante mais de 50 anos atuou no Itamaraty, concorda que o país deixou de lado a postura de “equilíbrio” que tinha e adota hoje, em relação ao conflito israelo-palestino, uma postura “claramente distorcida, desequilibrada, em favor apenas da visão dos israelenses”.

Rubens Ricupero no Senado Federal em 2011.
Rubens Ricupero no Senado Federal em 2011. wikipédia

Segundo ele, essa posição fere interesses políticos: “o Brasil era visto como uma força de moderação, de equilíbrio, de imparcialidade, com capacidade de desempenhar algum papel nessas questões”. Além disso, com essa atitude, “nós alienamos os palestinos, a maioria dos países árabes, e o Irã. Esses países representam mercados promissores e, agora, na melhor das hipóteses nos vamos ter que lutar muito para manter as posições atuais. Não vejo mais possibilidade de expandir”, prevê o embaixador.

Democracia antiliberal

Segundo Ricupero, essas ideias de extrema direita, partilhadas pelo presidente e por seus três filhos, são as que mais caracterizam o atual governo formado por setores heterogêneos. Nesse contexto, os militares da reserva tentam desempenhar um papel de moderação, como no caso da Venezuela ou da transferência da embaixada do Brasil para Jerusalém, mas não conseguem inverter a tendência e evitar os danos para a imagem do país.

“A imagem do Brasil hoje já está muito afetada. O Brasil passou a ser visto como um dos membros desse grupo que os americanos chamam de regimes de democracia antiliberal ou iliberal. No sentido de que são governos que chegaram ao poder pelo voto e não pelo golpe, mas que são de orientação contrária tanto aos princípios liberais da democracia como a todo o ideário dos direitos humanos e do meio ambiente que são o governo de Trump, de Salvini e Orbán. Obviamente não são países olhados com admiração e que têm uma posição muito contrastante, por exemplo, com as democracias da europa ocidental”, ressalta o ex-embaixador que foi secretário-geral da UNCTAD, a agência da ONU sobre o Comércio e o Desenvolvimento.

Essa visão ideológica nacionalista, antiblobalização, é incoerente com a posição liberal da área econômica. “Infelizmente, ela vai ter um efeito muito nocivo”, antecipa Ricupero. Na opinião do ex-ministro, o governo “não possui um projeto de construção” e sim de “desconstrução” do país, como revelou fala do presidente Jair Bolsonaro em um jantar em homenagem a Olavo de Carvalho, durante sua viagem a Washington, em março. “Isso explica de maneira geral a abordagem deles não só no Itamaraty, mas também no Ministério da Educação com muita nitidez”.

“Não tenho nenhuma expectativa positiva. A tendência é que a situação se agrave. Pessoas mais lúcidas começam a se dar conta de que não existe lado melhor. Nunca me iludi. O tempo dirá”, conclui cético o embaixador.

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