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Militares nomeados por Bolsonaro são mais moderados do que ministros, diz Leonardo Sakamoto

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A RFI conversou com Leonardo Sakamoto, doutor em Ciências Sociais, professor de jornalismo e colunista do portal UOL sobre política de direitos humanos. Ele também dirige a organização não-governamental Repórter Brasil, além de ser conselheiro do Fundo da ONU contra formas contemporâneas de escravidão e tráfico de pessoas. Sakamoto esteve no Palácio das Nações, em Genebra, durante um encontro sobre trabalho escravo.

Leonardo Sakamoto, cientista social e ativista brasileiro contra escravidão
Leonardo Sakamoto, cientista social e ativista brasileiro contra escravidão RFI/Rui Martins
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Rui Martins, correspondente da RFI em Genebra

O trabalho escravo diminuiu no Brasil?

O trabalho escravo no Brasil tem sido combatido firmemente desde 2003. Desde 1995, quando Fernando Henrique reconheceu a persistência desse crime diante das Nações Unidas, até hoje, houve mais de 53 mil pessoas resgatadas oficialmente pelo Estado brasileiro em operações de fiscalização. A partir de 2003, Lula deu continuidade a esse combate, transformado em prioridade de Estado, e houve um aumento no número de ações e operações para resgatar trabalhadores em fazendas de gado, soja, algodão, produtores de carvão, construção civil, oficinas de costura e por aí afora.

Entretanto, não se tem o número exato de pessoas em situação de escravidão. A estatística é muito incerta. Então, trabalhamos com o número de libertações e ações. É difícil dizer se o problema diminuiu, é possível dizer que ele foi melhor enfrentado. Mais recentemente com a crise econômica que reduziu a quantidade de recursos voltados a essa política pública, quanto à prioridade do Estado brasileiro que parece ter reduzido com relação ao trabalho escravo acabou por colocar essa política numa situação de ameaça, a ponto de, no ano passado, o governo federal ter proposto uma alteração na lei, no significado de trabalho escravo que iria dificultar a libertação das pessoas.

Com a vitória da extrema direita no Brasil, quais as repercussões previsíveis em termos de racismo, homofobia, perseguição ideológica dos professores nas escolas e nas universidades?

Apesar do presidente Bolsonaro ter dito, logo após suas eleições, que vai trabalhar para não excluir nenhum grupo, que vai governar para todos os brasileiros, que já chega de divisões e culpou os outros grupos políticos que vieram antes dele pelas divisões existentes, há o fato de que o Brasil é um país historicamente machista, racista, homofóbico, transfóbico, é um país que mata sua população indígena, desaloja sua população quilombola e expulsa a população ribeirinha. O Brasil é um país dividido desde que o primeiro indígena foi obrigado, pelo primeiro branco, a carregar a primeira tora de pau-brasil para dentro da primeira caravela de volta para a Europa.

Então, essa divisão existe, a única diferença é que ela não era explicitada. Infelizmente há um temor muito grande por parte das organizações de direitos humanos no país, com a chegada de Bolsonaro, que deu, ao longo da sua longa carreira política de 28 anos como deputado, uma série de declarações agressivas e ofensivas, com relação às minorias, com relação aos negros, mulheres, indígenas, quilombolas, homossexuais e transsexuais, por isso há uma dúvida quanto à real preocupação do governo em proteger esses grupos ou para deixá-los expostos. Então, esses grupos acreditam que sofrerão mais violências do público mais violento, homofóbico e em geral, que se sentirá empoderado pelo governo e aí está a grande diferença e a importância nessa discussão.

Não é que o governo vai chegar e dizer “ataquem essas minorias”. Nem precisa. O modus operandi, não só no Brasil mas no mundo, é simples: o governo volta atrás nas políticas de direitos sociais, econômicos, culturais, ambientais que protegiam essas comunidades, deixa eles ao relento e essa ação é lida por seguidores mais radicais do governo como uma autorização para atacar, para matar. Infelizmente, a menos que o governo dê uma sinalização positiva a gente vai ter essa situação.

Como você vê essa espécie de teocracia militar que se acentua na formação do governo Bolsonaro?

Eu acho que por um lado existe uma influência muito grande da bancada do fundamentalismo. Acho importante dizer fundamentalismo religioso porque não são deputados católicos e evangélicos que são o problema, muito ao contrário, mesmo porque é muito natural e desejável que o Brasil seja uma nação plural, que todos tenham voz. Mas o problema é quando determinadas interpretações radicais da Bíblia se sobrepõem à Constituição brasileira. Esse é o nosso medo, que Bolsonaro, que foi eleito com o suporte de parte dessas lideranças fundamentalistas religiosas, coloque em prática uma política que deixe ao relento esses grupos que são alvo dessas lideranças. E aí a gente tem o que? Uma política LGBT, uma política com relação aos direitos das mulheres, uma política com relação aos direitos reprodutivos que podem sofrer pesados revezes.

Ao mesmo tempo, Bolsonaro colocou, até agora, pelo menos seis militares, além de técnicos que trabalharão com as Forças Armadas dentro do seu governo. Se por um lado isso é preocupante, porque a sociedade elegeu um governo civil e não um governo militar, por outro, e aí é mais interessante, boa parte dos escolhidos por Bolsonaro para essas posições parecem ser muito mais moderados, racionais e preocupados em seguir a Constituição do que alguns ministros civis, como os ministros da Educação e das Relações Exteriores que deram declarações ou escreveram textos muito preocupantes com relação aos direitos da coletividade.

Então, é muito cedo ainda para dizer se essa bancada militar, se essa parte, se esse grupo militar do governo vai trazer lembranças do período difícil que vivemos, que foi a ditadura de 1964 a 1985. E hoje, a tendência, pelo discurso deles, é a de que são bem mais moderados do que o presidente da República.

Como você vê o prometido desmantelamento de ONGs voltadas ao trabalho social, no que se poderia chamar de macartismo à brasileira?

É muito preocupante que pessoas do novo governo estejam defendendo a caracterização de organizações sociais como organizações terroristas. Porque a base da garantia de direitos sociais brasileiros, direitos civis, direitos políticos, é a de uma sociedade vibrante, uma sociedade civil que tem monitorado de perto os governos desde a redemocratização e que tem sido responsável através de sua pressão e de sua atuação constante pela efetivação do texto constitucional brasileiro.

Os direitos não são dados, eles são conquistados. É a sociedade civil a responsável pela conquista. Os “Sem Terra” que pegam e ocupam propriedades e terras produtivas, griladas, roubadas, pedindo sua desapropriação, os ”Sem Teto” que ocupam imóveis totalmente inabitáveis, no qual só vivem durante anos ratos e baratas, pedindo sua desapropriação. Agora o governo Bolsonaro quer que esses movimentos sejam considerados terroristas e punidos como tais. Felizmente outras pessoas do próprio governo são contra e eu acredito que essa discussão vai acabar pegando fogo no próximo ano.

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