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Relatório de ONG denuncia impacto negativo da soja produzida na América do Sul

O impacto da exportação e do uso da soja na alimentação de animais destinados ao consumo humano é o foco do relatório “Quando o desmatamento chega à nossa mesa”, publicado neste mês pela ONG Mighty Earth (“Poderosa Terra”, em inglês), em parceria com a RFI. No documento, ativistas alertam para o desmatamento desenfreado, a perda de propriedades de pequenos agricultores e problemas de saúde na população ligados ao uso de pesticidas.

Área desmatada na floresta Amazônica
Área desmatada na floresta Amazônica Facebook/institutoamazonia.org.br/
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Com informações de Marie Normand e Simon Rozé

“Eu, que nasci e cresci aqui, não acredito que a soja seja um alimento. Para mim, ela é uma doença. A soja é para as grandes empresas, não para nós”. É com a denúncia da agricultora argentina Catalina Cendra, da região do Chaco, que começa o longo relatório da ONG Mighty Earth, chamando a atenção para as consequências da exportação e da utilização da soja no mercado global. “Os aviões pulverizadores passaram às 6h. Eles envenenaram a água e os reservatórios. Eles nos deixaram doentes”, declara Cendra.

O cultivo da soja e sua exportação para alimentar animais pelo mundo é um problema complexo e que tem consequências locais, como mostra o caso de Catalina Cendra na Argentina, e globais, como é o exemplo da França, que tem o produto como uma das principais fontes de alimentação na criação de animais. Todos os anos, o país importa de 3 a 3,5 milhões de toneladas de resíduo de soja, sendo boa parte oriunda do Brasil, que é o maior exportador do produto para a Europa.

O relatório teve como foco a região do Chaco, cuja área verde se estende entre o Brasil, a Argentina, a Bolívia e o Paraguai. Menos conhecida que sua vizinha Amazônica, a floresta do Chaco possui uma biodiversidade extremamente rica, com 110 milhões de hectares onde habitam 3.400 espécies de plantas e 500 tipos de pássaros, além da maior variedade de tatus no mundo. Várias comunidades indígenas também vivem no local e dependem basicamente da caça e da colheita – sendo uma das principais vítimas do desmatamento.

Devido ao cultivo da soja, o Chaco já perdeu oito milhões de hectares de floresta em 12 anos. 15.125 hectares de árvores foram abatidos somente em janeiro de 2018, segundo a organização ambiental Guyra Paraguai. Na Argentina, uma lei nacional de 2007 tenta proteger as áreas verdes, mas é dificilmente aplicada na prática. “Hoje, somente 27% das florestas primárias sobrevivem no país. A multa por desmatamento é facilmente compensada”, lamenta o Greenpeace Argentina.

A soja e a globalização

A América do Sul é o continente que mais produz e exporta soja destinada à alimentação de animais, sendo o Brasil o grande exportador do grupo. Em seu total, as plantações ocupam um território de mais de 40 milhões de hectares, ou seja, maior que a Alemanha.

A soja sul-americana é geneticamente modificada para sobreviver à exposição massiva ao pesticida “Round Up Ready”, da empresa Monsanto. O interesse para os produtores é sobretudo econômico: as plantações são mais resistentes e exigem menos cuidado, o que possibilita um cultivo em maior escala, destinado essencialmente à exportação.

Quatro empresas multinacionais detêm o monopólio desse mercado. São as chamadas “ABCD”: Archers Daniel Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company (LDC). Elas se encarregam de recuperar a soja dos produtores e de exportá-la.

O que interessa aos criadores de animais é o resíduo da soja, obtido após a extração do óleo e de um processo de trituração. Essa etapa pode ocorrer antes ou depois da exportação. Em seguida, a soja passa pelas mãos dos transformadores, que propõem, finalmente, produtos de complementação alimentar destinado aos animais.

Paraguai, vítima da própria produção

Cerca de 94% das terras cultiváveis do Paraguai são dedicadas ao agronegócio e 65% ao cultivo da soja, de acordo com Marielle Palau, socióloga e pesquisadora do Centro de Pesquisa Sociais Base, de Asunção. “Cerca de 20% dessas terras estão nas mãos de proprietários estrangeiros, sobretudo brasileiros. Quase toda a soja produzida no Paraguai é exportada. Isso representa 32% do total de nossas exportações e beneficia apenas os grandes proprietários de terra, já que eles quase não pagam impostos”, declara Palau.

Os principais países beneficiários da soja paraguaia são a Rússia, a Turquia, a Alemanha, o México, a Espanha e o Brasil. Esse contexto impacta diretamente os pequenos produtores: em 12 anos, o número de hectares desses últimos passou de 600.000 a 300.000.

Os pequenos agricultores não beneficiam de nenhuma ajuda do Estado e muitos decidiram vender seus terrenos, após terem recebido uma boa oferta. Os que ficaram viram suas condições de vida se deteriorar, com as frequentes fumegações de pesticidas que contaminaram a água, intoxicaram os animais e deixaram a população doente.

“As famílias foram forçadas a partir. O último método utilizado foi incitá-los a começar um cultivo fadado ao fracasso, para que eles percam tudo e tenham que hipotecar suas terras. Estamos face a uma política de exterminação de fazendeiros e de povos indígenas”, denuncia Palau.

Alimentação transgênica

O que chama a atenção no relatório da Mighty Earth é o fato de que a maior parte da soja utilizada para alimentar os animais que chegarão aos pratos dos franceses é geneticamente modificada. Os ovos e a carne encontrados nos supermercados, nos fast-food e nos restaurantes fazem parte, portanto, dessa roda gigante global da soja.

Cerca de 12% da soja que a França importa vem da Argentina e do Paraguai, mas a maior parte vem do Brasil. “A soja de origem brasileira é de uma boa qualidade proteica para os bichos”, afirma Patricia Le Cadre, reponsável do polo de alimentação e filiais de produção animal no Centro de Estudos e de Pesquisa sobre a Economia e a Organização de Produções Animais (Céréopa).

Esse processo é contraditório porque, ainda que os produtos dos supermercados franceses contenham a etiqueta “Criados na França”, eles não fazem nenhuma menção à origem da alimentação dos animais, nem se eles foram ou não alimentados com soja transgênica.

“A alimentação animal à base de soja transgênica é legal na União Europeia e os criadores estão cientes da natureza do produto”, afirma Christophe Noisette, editor-chefe do jornal Inf’OGM, especializado no assunto. Ele chama a atenção, entretanto, para o “fenômeno das etiquetas”. “Existe um fenômeno particular na França: o estômago dos animais metaboliza a etiquetagem. Em outras palavras: a soja transgênica deve ser etiquetada como tal, mas um presunto oriundo de um porco alimentado com soja transgênica, não”.

Esse “fenômeno” está longe de mudar. As empresas distribuidoras temem que uma etiqueta informando o tipo de alimentação dos animais poderá provocar revolta entre os consumidores. Fica aos franceses a ambiguidade de um produto que pode ou não ser de origem transgênica.

Combate ao desmatamento

A importação da soja na França não é indispensável, já que é possível cultivá-la no país. Mas a operação sairia mais cara e aumentaria o preço da carne; o conflito é, portanto, econômico. As “ABCD” alegam lutar contra o desmatamento.

Em entrevista à RFI, Hervé de Praingy, diretor da Cargill France, rejeita as acusações do relatório da Mighty Earth. “Não comentarei esse documento enquanto não o tiver lido. Mas o grupo se engajou na redução de 50% da taxa de perda de florestas naturais em escala mundial daqui até 2020”, declara Praingy.

O grupo Bunge permanece vago quanto às acusações e lembra, como a Cargill, que tem um plano de “desenvolvimento sustentável”. A companhia afirma trabalhar com agências governamentais e ONGs para identificar as áreas suscetíveis para acolher uma agricultura mais durável. “Nós vigiamos nossas terras através de ferramentas como o Global Forest Watch. Não descobrimos nenhum caso de desmatamento”, alega.

A Louis Dreyfus Company tem um discurso similar às outras multinacionais: “A durabilidade está no centro de nossas práticas, especialmente em termos de produção da soja”. Quanto a suas atividades na região do Chaco, a LDC explica “não possuir nenhuma fazenda de exploração agrícola na Argentina”.

As ABCD assinaram, há mais de uma década, um acordo para proibir o comércio com produtores de zonas desmatadas da floresta Amazônica brasileira. As empresas também têm o ambicioso objetivo de chegar a 100% de cultivo sustentável, com zero desmatamento, até 2025, sem deixar claro se isso inclui o desmatamento legal ou não.

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