Acessar o conteúdo principal
Brasil-América Latina

"Eu não tive coragem de continuar com Vinícius de Moraes", diz Marta

Publicado em:

A história de amor entre a argentina Marta Rodríguez Santamaría e o compositor carioca Vinícius de Moraes (1913-1980), tema do documentário "O Vinícius de Marta, um amor portenho", do cineasta Carlos Pronzato, foi exibida nesta semana na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. A RFI conversou com Marta, a oitava das nove esposas de Vinícius.

Vinícius de Moraes em Milão, na Itália, no inverno europeu de 1975-76.
Vinícius de Moraes em Milão, na Itália, no inverno europeu de 1975-76. MRS/Arquivo pessoal
Publicidade

Do correspondente da RFI em Buenos Aires

"Eu não tive coragem de continuar com Vinícius de Moraes", diz Marta. No verão de 1975, eles se conheceram em Punta del Este, no Uruguai. Mal sabiam que passariam os três anos e meio seguintes entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires ou em qualquer cidade do mundo aonde uma turnê os levasse.

"Martinha", como Vinícius a chamava, fez coincidir as suas férias no Uruguai com as apresentações de Vinícius em Punta del Este em fevereiro daquele ano. Também passou a frequentar o mesmo restaurante em que Vinícius jantava depois de cada show.

"Eu queria conhecer o Vinícius. Uma amiga e eu conhecemos o baterista dele numa praia em Punta del Este. Ele nos contou que Vinicius jantava sempre no mesmo restaurante. Na primeira noite, ele não foi. Na segunda, chamou-nos para sentarmos à mesa com ele", recorda Marta.

A então estudante de Direito tinha iniciado o seu fascínio platônico pelo poetinha um ano antes, quando ouvira a faixa "Se Todos Fossem Iguais a Você" no LP "La Fusa", um legendário disco argentino que reuniu Vinicius, Toquinho e Maria Creuza em Buenos Aires e que marcou gerações na Argentina com a música brasileira.

Atração irresistível

De fã a uma atração inevitável passaram-se apenas alguns dias. Primeiro Vinícius pediu que ela ficasse mais uma noite para assistir ao show em Punta del Este. "Eu já tinha de deixar o hotel em Punta e tinha passagem para voltar a Buenos Aires no dia seguinte. Acabei ficando mais dois dias", conta.

Depois, pediu que ficasse para o show seguinte em Montevidéu com Toquinho e Joyce. E uma semana depois, Vinícius veio à Argentina para mais shows em Buenos Aires, com Edu Lobo, e procurou por Marta.

"Na última noite, nos bastidores, ele me disse 'Martinha, vou ter muitas saudades de você'. Disse em espanhol porque eu ainda não falava português. Eu sentia que havia alguma sedução, mas com isso eu pensei "Epa! Alguma coisa está acontecendo'. Ficou claro", relembra.

"O Vinícius tinha uma energia completamente fora de série. Uma força fora do comum. Carisma, sedução, simpatia. Eu nunca vi uma pessoa igual ao Vinícius", descreve.

Virgílio de Moraes

Marta e Vinícius durante uma turnê do compositor no México, em agosto de 1976.
Marta e Vinícius durante uma turnê do compositor no México, em agosto de 1976. MRS/Arquivo pessoal

A partir daí, viriam as cartas sob o pseudônimo de "Virgílio de Moraes" para despistar a mãe de Marta, que não aceitava a relação. Também para despistar a ainda sétima esposa de Vinícius, Gesse Gessy, com quem o poetinha vivia em Salvador. "Vinícius ainda estava casado, mas eu não sabia. Eu não perguntei a ele. Começou como uma amizade", explica.

As cartas eram como viver a canção "Minha Namorada", de Vinícius e Carlinhos Lyra, com os versos "meu poeta eu hoje estou contente porque eu recebi uma cartinha sua" até "se você quer ser minha namorada [...] sem a qual a vida é nada, sem a qual se quer morrer".

"Essas cartas refletiam exatamente o que o Vinícius era: muito romântico. Agora eu posso tomar distância, deixar as minhas penúrias pela minha mãe que era uma coisa dramática. Posso rir e desfrutar dessa história maravilhosa de Vinícius me escrevendo secretamente da Bahia, indo a um hotelzinho de um amigo dele para me escrever as cartas", desabafa Marta.

Enquanto isso, em Buenos Aires, ela estudava português. "No estilo de Vinícius, ele me sugeriu 'seria interessante você estudar português'. Aí, me recomendou a Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do Drummond. Maria Julieta foi a minha professora", conta. A filha de Drummond era diretora do Centro de Estudos Brasileiros (CEB), extensão cultural da Embaixada do Brasil em Buenos Aires.

Vinícius estava num processo de separação que culminaria no final de 75. Em novembro, Martinha já estava morando com Vinícius, inicialmente na casa de Chico Buarque no Rio de Janeiro. No mês seguinte, acompanharia o seu agora marido numa longa turnê pela Europa com Toquinho e Joyce.

39 anos de diferença

A jovem de apenas 22 anos e o poeta de 61. A diferença de 39 anos, no entanto, não foi uma barreira. "Nunca pensei 'não, ele é muito mais velho do que eu. Não posso, não devo'. Era muita diferença de idade, mas não era qualquer homem de 60. Era o Vinícius com essa coisa mágica que te transformava. Eu nunca fiquei arrependida de ter ficado com Vinícius, nunca", assegura Marta.

O carioca tinha a idade do pai de Marta, que aceitou a relação. O irmão dela, quatro anos mais novo, tinha uma boa relação com Vinícius. A mãe foi o grande obstáculo. "Eles tiveram uma reunião em Buenos Aires. A minha mãe veio falar com ele. Questionou como ele estava com uma menina. Foi uma reunião difícil", conta.

Época dourada

A vida no Rio de Janeiro dos anos 70 era maravilhosa. Os amigos de Vinícius receberam Marta como uma igual. Tom Jobim, Chico Buarque, Toquinho. O mesmo valeu para as irmãs e para as filhas do poeta. "Foi como a canção Água de beber (A minha casa vive aberta/ Abri todas as portas do coração). Fui aceita por todos. Foi maravilhoso. Eu estava apaixonada não só pelo Vinícius, mas pela cidade, pelos amigos", ilustra Marta, que trocava a sociedade portenha mais fechada pela carioca, aberta.

A portenha Marta Rodríguez Santamaría foi a oitava das nove mulheres de Vinícuis de Moraes.
A portenha Marta Rodríguez Santamaría foi a oitava das nove mulheres de Vinícuis de Moraes. MRS/arquivo pessoal

Como testemunha privilegiada da Bossa Nova, Martinha assistiria a todos os shows de Vinícius, menos um no Olimpia, em Paris, porque, enquanto Vinícius se apresentava, Baden Powell ficou no camarim tocando exclusivamente para Marta.

Quando, em 1976, Tom Jobim lançou Urubu, o casal Vinícius e Marta foi o primeiro a ir até a casa de "Tonzinho" para a apresentação das canções do novo LP. "Foi uma época de muita plenitude. Era tudo harmonioso. Não tinha nada discordante. Tudo fluía. Era uma coisa incrível. Os anos mais intensos da minha vida", define.

A separação

A pressão da mãe, a faculdade de Direito interrompida e a vida portenha posta de lado começavam a pesar até que, em meados de 1978, Marta decidiu regressar. "Chegou um hora em que a gente se separou. Eu me separei por essa razão, mas eu continuava amando o Vinícius", revela.

Vinícius ainda tentou recuperar a relação com aquela para quem tinha escrito o "Soneto de Marta" e duas canções "Amigo portenho" e o samba "Se ela quisesse".

"Ele veio a Buenos Aires, durante a Copa do Mundo de 78, para me pedir que o acompanhasse pela Europa com o show do Canecão (legendário show de 1977 com Tom Jobim, Toquinho e Miúcha). Eu disse 'olha, Vinícius, eu estou procurando um trabalho, quero ver se volto para a faculdade'. Foi terrível, muito duro esse momento", descreve. "Ele aceitou porque sabia que o assunto não era fácil para mim", interpreta.

No samba "Se ela quisesse", Vinícius diz a Marta: "Se ela tivesse a coragem de morrer de amor, se não soubesse que a paixão traz sempre muita dor".

"Vou dizer uma coisa forte: eu não tive a coragem de ir atrás de Vinícius e de continuar estando ao lado dele. Não tive coragem. Era jovem. Apesar dessa afinidade que a gente teve", confessa.

"Infinito enquanto dure"

"Foi um encontro de almas. Um encontro que estava marcado, que tinha que acontecer, que não podia não acontecer. Foi muito forte e foi inevitável", avalia.

Ela se separou, mas, no fundo, nunca terminou. Assim como Vinícius é imortal como a chama, o amor de Marta é infinito porque ainda dura.

Quando Vinicíus faleceu em 1980, Marta soube pela TV em Buenos Aires. Tentou falar com a família que estava no cemitério. Não conseguiu voo. Ficou impossibilitada de comparecer fisicamente. Um amigo fotógrafo, Jorge Aguirre, que cobria a visita do Papa João Paulo II ao Rio, sabia da história de Marta. Distante, intuiu o que acontecia. Foi ao cemitério como fotógrafo e colocou flores brancas em nome de Marta junto ao caixão de Vinícius.

"Ele teve flores minhas. Flores brancas", murmura emocionada. E como dizia o poeta, "a vida só se dá para quem se deu".

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.