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Em Barcelona, Jean Wyllys expõe desenhos de seu exílio político: “Preciso produzir memória”

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Vivendo fora do país desde 2019, quando teve de deixar o Brasil e seu mandato de deputado federal devido a ameaças de morte, Jean Wyllys mostra ao público sua elaboração do exílio através da arte. O ex-deputado federal apresenta em Barcelona seus desenhos e pinturas, na exposição Desexílio. Em entrevista à RFI, Wyllys conta que as artes visuais foram uma terapia nos momentos mais duros desse exílio imposto por uma campanha de ódio contra ele e diz ainda não se sentir seguro para ir ao Brasil.

Em Barcelona, o ex-deputado federal Jean Wyllys apresenta a exposição "Desexílio", que reúne desenhos, pinturas e colagens feitas durante seu exílio
Em Barcelona, o ex-deputado federal Jean Wyllys apresenta a exposição "Desexílio", que reúne desenhos, pinturas e colagens feitas durante seu exílio © Divulgação/Palau de la Virreina/Pep Herrero
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Cristiane Capuchinho, da RFI em Barcelona

No coração pulsante de Barcelona, em plena Rambla, um cartaz com o desenho de corvos sobre a bandeira do Brasil chama a atenção para a exposição de Jean Wyllys. Dentro do Palau de la Virreina, sede do Instituto de Cultura da prefeitura de Barcelona, o ex-deputado federal mostra em desenhos, pinturas e colagens um pouco de sua história e muito do que tem pensado e sentido sobre o Brasil desde que deixou o país.

Sob o nome de Desexílio, estão reunidas quase uma centena de obras criadas durante suas passagens pelos Estados Unidos, pela Alemanha e pela Espanha, lugares em que viveu após abrir mão de seu mandato de deputado federal em busca de segurança. Nesta entrevista, Wyllys conta que o trabalho em artes visuais é uma continuidade de sua ação política como um “intelectual público” e é também forma de criar memória sobre sua história.

"O enterro da verdade e a ascensão do ódio", de Jean Wyllys
"O enterro da verdade e a ascensão do ódio", de Jean Wyllys © Divulgação/Palau de la Virreina

Em conjunto com o livro que recém publicou com a filósofa e artista plástica Marcia Tiburi, “O que não se pode dizer – experiências do exílio” (ed. Civilização Brasileira), o ex-deputado federal se revela preocupado em documentar esse período e controlar a narrativa sobre sua vida. “Se eu não produzir memória, se eu não deixar documentos, eu vou ser apagado. É preciso deixar rastro para que no futuro a história seja contada como tem que ser”, crava. “Havia muita mentira no Brasil sobre mim e sobre meu exílio.”

Apesar de estar longe de sua terra, Jean Wyllys nunca deixou de se manifestar politicamente e marcar presença nas redes digitais nos últimos anos, participando ativamente da campanha do agora eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Contudo, ele lamenta não poder estar presente na posse em janeiro de 2023. “Não é seguro para mim ainda.”

Confira a seguir os principais trechos da entrevista à RFI Brasil.

RFI - Como foi a escolha do nome “Desexílio” para sua exposição?

Jean Wyllys - Esse é um termo que foi cunhado por Mário Benedetti, um escritor uruguaio que viveu no exílio aqui na Espanha e que falou disso quando ele começou o processo de retorno para o país dele, o Uruguai. Ele disse que a volta era um processo, assim como o exílio é um processo. Quando você está em exílio, você nunca sai completamente de onde você foi expulso ou de onde teve que sair, e você nunca chega completamente para o lugar onde foi. O exílio é esse intervalo, essa fronteira longa.

E o Desexílio significa encontrar um novo lugar nesse mundo. Então o Brasil deixou de ser meu lugar, meu chão. E, uma vez que eu não podia viver no Brasil sobretudo pela violência política, eu precisava encontrar um novo lugar. Esse processo não é fácil, e as pinturas e os desenhos fizeram parte dessa busca por um novo lugar, fizeram parte de uma terapia mesmo, um processo de cura para minhas feridas em relação a essa violência.

Talvez eu comecei a rabiscar antes mesmo de falar porque eu pegava um palito de fósforo e começava a desenhar no chão. Ficava no quintal de casa com a minha mãe, que lavava roupa, e eu ficava desenhando. No momento mais duro do exílio, quando estava nos Estados Unidos [onde ficou como professor visitante da universidade de Harvard] e veio a pandemia de Covid-19, eu me vi isolado num país cuja língua não falava bem, no frio com temperaturas negativas e com medo de morrer longe da minha mãe, dos meus irmãos, medo que eles morressem quando eu estava longe. O desenho foi um mecanismo inconsciente de voltar a esse lugar, a esse abrigo, a esse chão que era ao lado da minha mãe.

RFI – Os desenhos expostos trazem um pouco dessa nostalgia, de lembranças da família, mas têm muito do noticiário brasileiro.

JW – Muito, porque meu trabalho em arte visual é uma continuidade do meu trabalho como jornalista e como ativista. As pessoas me dizem ‘você é artista visual’, e eu falo: "Não, eu sou um intelectual público que se expressa também pelas artes visuais". É comentário mesmo sobre o cotidiano político, sobre as coisas que nos afligem. Tem uma série inteira que foi a minha primeira exposição [Fábrica de Artes Roca Umbert] feita só com obras sobre jornais. Dentro da precariedade da minha vida no exílio, eu comecei a trabalhar com suportes que não fossem só a tela só. E o jornal não é um mero suporte, a minha intervenção sobre aquela notícia é um diálogo com aquela notícia, tem uma elaboração em cima disso. Minha arte é uma arte política.

"RIP (ou flores mortas)", desenho sobre jornal feito por Jean Wyllys
"RIP (ou flores mortas)", desenho sobre jornal feito por Jean Wyllys © Divulgação/Palau de la Virreina

RFI – Recentemente você publicou o livro epistolar “O que não se pode dizer”, com a Márcia Tiburi, sobre a experiência do exílio. Ali você fala sobre a dificuldade de viver em exílio quando existe uma ameaça que é onipresente, seja por vias digitais seja por brasileiros que estão em outros países, como vimos recentemente com a perseguição a ministros do STF e ao Gilberto Gil no Catar. Que exílio é possível atualmente?

JW - O exílio não pode ser mais vivido como antes. Antes o exílio era um desterro. Em muitos casos, o exílio virava uma morte social. Quando um país condenava alguém ao degredo, ao exílio, aquele país estava matando socialmente aquela pessoa, afastava ela da sua terra, afastava ela dos seus amigos, de sua família… No meu caso, eu tive que sair porque o Estado não me protegia. Só que agora a gente tem que pensar que o exílio é vivido como uma presença/ausência, porque eu estou ausente do Brasil do ponto de vista analógico, físico, a minha presença física não está lá, mas nessa ‘second life’, nesse mundo da internet que a gente vive, nesse mundo construído por essa infraestrutura global de publicação, eu estou presente. E em ambos os territórios, seja no território virtual seja no território analógico, há ameaças. Digamos que agora é de mais difícil viver no exílio ou o exílio se torna mais pesado.

A gente ainda está em processo de elaboração sobre o que é o exílio no mundo de vigilância completa, num mundo em que as mídias sociais detêm nossas informações e que praticamente não há lugar em que a gente não esteja visível.

Eu vivi [a situação de] acosso duas vezes, nos Estados Unidos, por parte de bolsonaristas que vivem ali. Uma vez em Nova York, quando eu estava gravando o “Cinema em outras cores”, que era um programa que fazia para o Canal Brasil. E a outra, foi em Cambridge, dentro de um Starbucks. Nesses dois momentos, eu pude enfrentar os acossadores de uma maneira que no Brasil eu não podia porque eles eram ampla maioria no Brasil, principalmente em 2018. Em Barcelona isso nunca aconteceu, também porque optei por ficar low profile. Minha exposição aqui em Barcelona é muito baixa, eu não pedi asilo político, eu fiquei como estudante. Só agora nas eleições de 2022 que eu me senti à vontade para dar entrevista para a TV espanhola, porque não queria me tornar um rosto conhecido aqui na Espanha. Eu queria recuperar a minha vida, a vida que eu tinha perdido no Brasil.

"Vermelho, tudo é história 'tenho sangrado demais, tenho chorado para cachorro", obra de Jean Wyllys em exposição no Palau de la Virreina, em Barcelona, até janeiro de 2023
"Vermelho, tudo é história 'tenho sangrado demais, tenho chorado para cachorro", obra de Jean Wyllys em exposição no Palau de la Virreina, em Barcelona, até janeiro de 2023 © Divulgação/Palau de la Virreina

RFI - Ao mesmo tempo, você, que teve a vida tão devassada, não abre mão de contar detalhes ou de mostrar pensamentos muito íntimos no livro. Em nenhum momento você pensou em deixar de se expor?

JW – Essa é uma forma de exposição que eu assumo, uma exposição necessária porque eu preciso produzir memória sobre esse período. Se eu não produzir memória, se eu não deixar documentos, essa história não vai ser contada. Eu vou ser apagado. É preciso deixar rastro para que no futuro a história seja contada como tem que ser. Se não, a gente é apagado ou há um revisionismo histórico que conte outra história, né?

Eu precisava ter o controle da narrativa. Havia muita mentira no Brasil sobre mim e sobre meu exílio. A estrutura digital de comunicação do governo Bolsonaro, que é uma máquina de propaganda e de mentira chamada de gabinete do ódio, inventou a história de que eu tinha vendido o meu mandato para David Miranda, isso gerava uma fantasia de que eu estava no exílio porque eu queria, porque estava de férias na Europa. Isso é mentira. Eu estou aqui como imigrante, que teve que tocar sua vida. Eu sou beneficiário de uma bolsa [para fazer um doutorado] e essa é a vida que eu levo.

Eu tenho plena ciência dessa exposição,a Márcia [Tiburi] também, mas a gente precisava produzir memória e controlar a narrativa, senão viriam eles e assumiriam o controle dessa narrativa. E eu já tinha vivido isso no Brasil. A máquina de mentira e propaganda da extrema direita no Brasil já tinha assumido uma narrativa e me colocado em posição de risco, com as mentiras de que eu tinha defendido a pedofilia, a invenção de que eu queria obrigar as crianças a mudarem de sexo, a invenção de que eu queria impor o ensino do islamismo nas escolas públicas brasileiras. Essa série de mentiras feita por uma máquina de propaganda movida por muito dinheiro, um dinheiro que a gente até hoje não sabe direito o quanto, já que a polícia não concluiu ainda a investigação sobre o financiamento dessa máquina de mentiras.

E eu sei o peso e as consequências disso pra minha vida e a da minha família, então aqui fora eu não podia deixar aqui uma vez mais a máquina da mentira controlar a narrativa. Eu precisava dizer a verdade. Márcia precisava dizer. A gente conhece muito bem não só o revisionismo histórico do Brasil, mas a gente conhece muito bem quem controlou a história no Brasil e como eles apagaram pessoas completamente da história oficial.

RFI - Você hoje sente que é possível voltar ao Brasil?

JW - Ainda não é completamente seguro para mim voltar ao Brasil. Por exemplo, eu queria muito estar na posse do [presidente] Lula no dia 1º de janeiro. Vai ser um dia histórico, eu queria estar lá. Queria ser testemunha desse dia de retomada da democracia depois do golpe de 2016 contra Dilma, depois de todo o processo de fascistização da esfera pública brasileira. E eu sei que sou parte da construção dessa retomada. Eu fui a primeira das figuras públicas brasileiras a deixar o partido [PSOL] e entrar no PT, e fazer esse movimento político de apoio a Lula quando ele ganhou os direitos políticos de volta.

Eu queria estar lá, mas infelizmente não vou poder porque não é seguro para mim ainda. As manifestações dos fascistas nas ruas, na frente dos quartéis, são um risco para mim. Então eu vou ser mais uma vez paciente e esperar o governo Lula começar. Quando o governo Lula começar, quando essa seita política encarar a realidade dos fatos de que Lula venceu as eleições, e sair desse negacionismo, dessa histeria coletiva, aí sim eu vou voltar.

Antes não tinha condição nenhuma para isso. Agora, com a mudança de governo, com a recomposição do tecido democrático, com as instituições democráticas voltando a funcionar - porque uma parte delas estava completamente cooptada pelo fascismo - aí eu vou voltar.

RFI – E quando for possível, você pretende voltar para uma vida político-partidária, uma candidatura a algo?

JW - A princípio, não penso em retomar uma candidatura assim. Mas a gente nunca pode dizer "dessa dessa água não beberei". No momento, eu diria para você que eu não tenho vontade nenhuma de voltar a ser deputado. Eu trabalharia no Executivo, em uma área de inteligência estratégica para o próprio governo Lula. Acho que faria um trabalho melhor do que voltar para o Parlamento.

Sei que muita gente gostaria que eu voltasse para o Parlamento por causa da representação de vanguarda que foram meus mandatos. Nós antecipamos debates e fizemos proposições legislativas que estavam muito à frente da mentalidade política brasileira. Talvez por isso é que tenha despertado tanto ódio na extrema direita e na direita... Mas tem boas representações agora, desde que eu deixei o Brasil. Tem muito boas representações, principalmente por parte das mulheres negras que entraram. Então com essas pessoas lá representando, eu posso assumir um outro papel, que eu acho que é esse papel de uma inteligência estratégica, aproveitando inclusive a minha inserção internacional.

Exposição Desexílio, de Jean Wyllys, no Palau de la Virreina, centro cultural no centro de Barcelona. A mostra vai até 15 de janeiro de 2023
Exposição Desexílio, de Jean Wyllys, no Palau de la Virreina, centro cultural no centro de Barcelona. A mostra vai até 15 de janeiro de 2023 © Cristiane Capuchinho/RFI

 

"Desexílio", em exposição até 15 de janeiro de 2023 no Palau de la Virreina, em Barcelona.

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