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“Mulheres estão na vanguarda no combate ao racismo nas redes sociais”, diz sociólogo

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As mulheres negras que ascenderam socialmente são o principal alvo dos ataques racistas na redes sociais brasileiras, e suas estratégias de combate aos discursos de ódio as colocam na vanguarda na luta contra esse fenômeno, de acordo com o sociólogo Luiz Valério de Paula Trindade, autor de um livro sobre o assunto.  

O sociólogo Luiz Valério de Paula Trindade
O sociólogo Luiz Valério de Paula Trindade © Arquivo Pessoal
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Lançado em julho deste ano, “No laughing matter: Race joking and resistence in Brazilian Social Media” (“Não é tão engraçado assim: Piadas racistas e resistência nas redes sociais brasileira”, em tradução livre), publicado pela Vernon Press, é resultado da tese de doutorado de Luiz Valério na Universidade Southampton, do Reino Unido.

O tema de seu trabalho dá sequência às suas investigações científicas focadas nas relações entre raça e representatividade, e surgiu espontaneamente durante um evento acadêmico em Portugal, quando constatou o que considera comum na sociedade brasileira: temas sérios como o racismo sendo tratados na brincadeira, em forma de piadas. “Interagindo com colegas e doutorandos, tive meu primeiro insight de que racismo é um tema sério, mas muitas vezes levado de maneira jocosa. É o que o professor Adilson Moreira chama de ‘racismo recreativo’”, diz, referindo-se a uma de suas fontes acadêmicas. 

Luiz Valério diz ter partido do princípio de que a prática do racismo nas redes sociais brasileiras atingiria de maneira igualitária homens e mulheres, “50% para cada gênero”, mas se enganou. 

Mulheres negras na mira dos ataques racistas 

Em suas pesquisas de campo realizadas no Brasil em diversas plataformas sociais, sendo 217 delas em páginas de perfis abertos no Facebook, o sociólogo se deparou com um situação que redirecionou sua pesquisa. “Começou a emergir de maneira natural que as mulheres negras eram muito mais afetadas do que os homens negros. Percebi que tinha esse viés de gênero muito forte nos discursos racistas nas redes sociais”, explicou na entrevista à RFI.

“Grande parte dos ataques às mulheres negras eram camuflados como piadas. E como a piada é uma forma de comunicação socialmente aceita, desde que seja de um determinado nível, você pode contá-la em qualquer contexto. E isso permite que as pessoas transmitam ideologias racistas sem parecerem flagrantemente racistas. Ela serve como um escudo muito conveniente para quem quer transmitir e reforçar ideologias racistas”, acrescenta.

A facilidade de esconder a verdadeira identidade nos perfis usados pelos agressores facilita e ajuda a disseminar o discurso de ódio nesta arena contemporânea que se tornaram as plataformas digitais, segundo o pesquisador. “Esse tipo de prática migrou do ambiente offline convencional para o ambiente online. Por estarem por trás de uma tela de computador, esses usuários creem que isso lhes conferem uma permissão implícita para descarregar  suas ideologias, crenças e ódio contra qualquer pessoa”, ressalta.

Ao analisar os ataques, Luiz Valério percebeu eles tinham como alvo prioritário as mulheres negras que ascenderam socialmente na sociedade brasileira nos últimos anos. Esse aspecto, segundo ele, está relacionado com o histórico colonial e a construção da imagem da própria sociedade. 

“A formação da identidade brasileira é marcada pelos eventos do período colonial, de uma sociedade patriarcal e moldada a partir de um modelo que valorização de forma extrema à “branquitude”. Esse modelo associou os atributos positivos, beleza, inteligência, progresso social, modernidade, entre tantos outros, à “branquitude”, afirma.

Em contrapartida, segundo o sociólogo, uma série de atributos de cunho negativo foram vinculados à negritude. “Quando essas mulheres da faixa etária da minha pesquisa, entre 20 e 35 anos, ascendem socialmente, com acesso à educação de terceiro nível, de ensino superior, que lhes conferem uma certa visibilidade qualificada, como jornalismo, engenharia, medicina, etc, elas vão contra essa lógica que associavam negritude com atributos negativos. Elas subvertem essa ordem ‘natural’, e como essas crenças estão tão profundamente arraigadas no imaginário coletivo, os defensores dessa ideologia se manifestam para deslegitimar a ascensão social dessas mulheres negras”, argumenta.

Reações sem agressividade

No entanto, Luiz Valério também identificou as reações das mulheres negras a esses ataques e analisou as estratégias que elas desenvolveram para lutar contra o racismo.  “Os discursos racistas tendem a ser muito agressivos, às vezes muito desrespeitosos. Não apenas jocosos e lastreados em piadas.  Muitas vezes com termos e vocabulários muito agressivos. Observei que a resistência à essa prática não se dá na mesma sintonia. Quem combate o racismo nas redes sociais não utiliza o mesmo tipo de vocabulário e o mesmo tipo de linguagem. Pelo contrário, e as mulheres negras estão na vanguarda deste movimento de resistência das redes sociais”, garante.

Mas como elas fazem isso?  “Em primeiro lugar, através da valorização do cabelo natural afro, que representa não só um valor estético, mas principalmente um posicionamento político muito claro. Segundo, essas mulheres ‘empoderam’ outras mulheres no sentido de compartilhar experiências de situações de racismo, mas no sentido e ‘empoderá-las’ e dizer, você não está sozinha, nós estamos juntas. E, em terceiro, elas valorizam a beleza negra para elevar a autoestima das mulheres negras  que foram vítimas ou não nas redes sociais”, diz o sociólogo.  

Em sua tese, Luiz Valério constatou ainda que apesar dos avanços na legislação brasileira para o combater ao racismo, ainda existem brechas que dificultam a aplicação das leis quando se trata dos ataques destilados por meio das redes sociais. 

“Grande parte dos discursos racistas nas redes sociais, quando chegam no ambiente jurídico, ou seja, quando se tornam processos, e ainda são muito poucos, invariavelmente eles se tornam injúria racial”, diz, esclarecendo que a pena para esses casos de até seis meses de prisão, mas dependendo do juiz, são comutadas para serviços de interesse comunitário ou revertidas para cestas básicas.  “Isso gera na sociedade uma sensação de impunidade, a de que não é um crime punível”, defende. 

O sociólogo defende ainda que as grandes corporações que detêm as plataformas digitais deveriam ter “mais responsabilidade na formação e educação dos usuários mais jovens no sentido de não os engajarem nessa prática”. Segundo Luiz Valério, faltam ainda campanhas de informação para mostrar que a internet e as redes sociais não são “uma terra de ninguém”. “O próprio marco civil da internet deixa muito claro que o comportamento online é passível de ser punido pelo código civil”, recorda. 

O outro ponto abordado pelo pesquisador é sobre um debate que ocorre em nível internacional para definir o papel das grandes corporações, de mídia ou tecnologia. “Na condição de empresas de tecnologias, elas não se sentem responsáveis pelo conteúdo que circula nas suas plataformas. Se forem classificadas como empresas de mídia, como jornal ou revista, passam a ser também responsáveis pelo conteúdo”, afirma, esperançoso de que essa definição possa ajudar a combater o racismo nas redes sociais. 

Capa do Livro No Laughing Matter
Capa do Livro No Laughing Matter © Arquivo Pessoal

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