Acessar o conteúdo principal
Rendez-vous cultural

Filmes brasileiros levantam a questão do aborto no festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz

Publicado em:

A 32ª edição do Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz chega ao fim nesta sexta-feira (29), com a cerimônia de premiação dos vencedores em três categorias. O Brasil concorre com quatro filmes e, entre eles, dois tratam da temática do aborto. A RFI Brasil conversou com os diretores de “Levante” e “As Miçangas”, duas produções que abordam histórias de gravidez indesejada sob perspectivas bem diferentes.  

Filmes brasileiros em Biarritz
Filmes brasileiros em Biarritz © Divulgação
Publicidade

Maria Paula Carvalho, enviada especial da RFI à Biarritz

Levante, o primeiro longa-metragem de Lilla Halla, conta a história de uma atleta que fica grávida às vésperas de um campeonato decisivo para a sua carreira. “A Sofia é uma jogadora de vôlei que está às vésperas de um campeonato muito importante e, nesse momento, ela descobre essa gravidez indesejada. Então, o filme trata do processo dela. A Sofia não tem dúvidas de que ela não pode ser mãe nesse momento. E o filme trata dessa espécie de bola de neve que se cria em torno da decisão dela, num Brasil contemporâneo, num Brasil de 2022, que é quando a gente conta a história”, explica a diretora paulista.  

O filme é uma coprodução Brasil, Uruguai e França. Nos dois últimos países, a interrupção da gravidez é legalizada, enquanto no Brasil o tema está em discussão no Supremo Tribunal Federal. “O tema é muito atual. Gostaria que tudo isso fosse parte de uma história muito longínqua da nossa trajetória. Mas não é”, diz Lilla Halla.  

“O ‘Levante’ é um projeto de oito anos e desde que a produtora, Clarissa Guarilha, a co-roteirista Maria Helena Moran e eu estivemos na fronteira entre o Brasil e o Uruguai, em 2014, 2015 e 2016, e entrevistamos muitas pessoas que tinham sido parte desse movimento de descriminalização, muita coisa mudou”, observa a diretora. “Então, no momento em que uma mulher se descobre grávida, sem condições de manter ou sem o desejo de manter essa gravidez, há um muro de vida ou morte que se constrói nessa fronteira supostamente fluida. Poderia ter sido tão pouco traumático para Sophia se ela tivesse estado do outro lado da rua”, afirma. “E sim, existe o fundamentalismo, que é em parte religioso, mas sobretudo moral”, acrescenta. “Não à toa, no início de 2019, com a eleição de Bolsonaro e todo o início das legitimações de políticas de linchamento e ataques, foi o momento em que a gente construiu o final dessa história. Então, ele é um filme que trata de propor uma possibilidade de futuro diferente dessa, onde as pessoas com útero correm riscos de vida e de prisão absolutos nesse país. Mas ele também trata de ser uma espécie de documento desse momento, para que a gente não esqueça mais”, completa. 

Levante já recebeu um prêmio na França, em maio deste ano, quando foi considerado o melhor longa de estreia em mostras paralelas pela Fipresci, a Federação Internacional de Críticos de Cinema, durante o Festival de Cannes. A atriz Yomi Domênica faz o papel principal da jogadora de vôlei, que é bissexual. De acordo com a diretora Lilla Halla, formada pela Escolha Internacional de Cinema e TV (EICTV) de Cuba, este não é um filme feminista, tendo uma proposta mais ampla.  

“A mensagem mais importante desse filme é que esse levante se faz necessário. Ele se faz necessário com o trabalho de equipe. Não à toa o vôlei, essa metáfora no filme”, explica Halla. “A questão da gravidez indesejada fere a existência sobretudo de mulheres negras no Brasil, mas também de mulheres brancas e de pessoas não binárias, de pessoas com útero. Pessoas que correm risco à partir do momento em que colocam seu corpo num processo clandestino, ilegal ou por necessidade absoluta. Eu entendi que o meu cinema não podia reforçar esse lugar da vitimização”.  

Fábula inspirada no cerrado 

Outro filme brasileiro em competição em Biarritz que trata da questão da interrupção da gravidez é o curta-metragem “As Miçangas”, de Manuel Lavor e Rafaela Camelo. “As Miçangas é um filme muito sutil, uma pequena fábula sobre duas irmãs que fazem o aborto numa casa isolada no coração do cerrado. Só que chegando lá, a gente percebe que tem uma cobra rondando aquele espaço sem que elas percebam. E aí o resto é o resto”, conta o diretor Manuel Lavor, em entrevista à RFI Brasil, em Biarritz.  

O curta estrelado por Tícia Ferraz e Pâmela Germano é inspirado no folclore do interior do Brasil. “O cerrado é uma zona muito expressionista. E é um lugar, um espaço muito cinematográfico e sempre que eu tenho a oportunidade de ver na tela, fico assim muito inspirado, muito mexido”, diz Lavor. “Então, basicamente, ele tem sido uma fonte de muita inspiração. Esse não é o primeiro projeto e também não o último em que o cerrado é o grande contexto das histórias e ele é um dos corações do mundo, um dos biomas mais importantes e que pouca gente fala. A gente fala muito da Amazônia, do Pantanal, nesse processo de destruição também”, acrescenta o diretor. “Nesse filme, especialmente, eu não falo da degradação do cerrado, mas eu acho que é uma oportunidade de alavancar e contextualizar a exuberância desse bioma”, conclui. 

O diretor ainda fala sobre a experiência de participar de um festival tradicional como Biarritz. “Esse festival tem um recorte muito específico, muito interessante. É um festival que acontece na França, neste lugar maravilhoso que é Biarritz. Mas ele é extremamente temático. A cinematografia latino-americana. Então, é uma ótima oportunidade de conhecer pessoas fora da América Latina, tendo aqui esse público local. Então, é quase experimental, é muito especial”, finaliza. 

Ambos os filmes foram selecionados também para o Festival do Rio 2023, que acontece entre os dias 5 e 15 de outubro, no Rio de Janeiro, quando poderão ser vistos por espectadores brasileiros. 

Além de “Levante” e “As Miçangas”, o Brasil ainda participa das mostras competitivas em Biarritz com o longa-metragem de ficção “Propriedade”, de Daniel Bandeira, e “A Invenção do Outro”, de Bruno Jorge, que concorre a melhor documentário.  

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.