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Linha Direta

Argentina: Milei pressiona Congresso por 'superpoderes' e 'revolução liberal' em 1° mês de governo

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 O presidente argentino Javier Milei completa nesta quarta-feira (10) um mês no governo, tentando passar profundas reformas, apesar da hiperminoria governista. Para driblar essa limitação, Milei tenta obter do parlamento "superpoderes" e publicou um decreto questionado por juristas. Milei aproveita o capital político inicial para tentar mudar o rumo da economia argentina. Mas o presidente pode enfrentar a impaciência da população, acuada por uma inflação galopante em torno de 30% ao mês. 

O presidente da Argentina, Javier Milei, gesticula durante uma sessão no Congresso argentino.
O presidente da Argentina, Javier Milei, gesticula durante uma sessão no Congresso argentino. AFP - JUAN MABROMATA
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

O presidente argentino tem menos de 15% dos deputados e menos de 10% dos senadores no Congresso local. Diante desse quadro de minoria absoluta, os caminhos naturais da política seriam costurar uma ampla coalizão ou negociar com cada setor para formar maiorias e consensos. Porém, Javier Milei optou pelo caminho de submeter o parlamento argentino, aproveitando uma fragmentação da representatividade parlamentar, uma situação de emergência econômica e o capital político inicial.

Milei quer fazer uma revolução liberal imediata tentando passar todas as medidas de uma vez só. Nas duas primeiras semanas, apresentou três pacotes de medidas. As primeiras dez estavam dentro do que o Executivo pode fazer.

O segundo pacote foi um decreto, questionado por juristas e por legisladores. É um megadecreto nunca antes visto com 366 medidas que vão desde reforma trabalhista e previdenciária até mudanças no sistema de Saúde e privatizações, passando por questões nas que poucos conseguem ver a emergência como a obrigatoriedade do uso de togas por parte dos juízes.

Logo depois veio outro mega pacote, nesse caso enviado ao Congresso. Esse terceiro pacote tem 664 artigos que criam uma nova matriz econômica, partido das reformas eleitoral e tributária a alterações nos códigos civil e penal e passando por questões menores como preços livres para os livros ou a legalização da revenda de ingressos esportivos.

"Superpoderes"

Mas além de extremamente complexo, esse pacote tem um pedido de superpoderes legislativos que permitiriam ao presidente decidir sobre todas as matérias sem passar pelo Congresso. Em outras palavras, Javier Milei teria “carta branca” para governar de forma absoluta através de decretos e tornar o Parlamento um mero observador da sua revolução liberal.

Há ainda outro pacote à espera com mais 160 medidas. O título do pacote revela a intencionalidade de uma refundação: “Lei de bases e de pontos de partida para a liberdade dos argentinos”, cuja introdução diz que “o objetivo é promover a iniciativa privada através de um regime jurídico que garanta a liberdade e que limite a intervenção do Estado”.

“Milei é um homem com a missão de mudar radicalmente a Argentina para o país voltar a ser aquilo que ele acha que foi em meados do século XIX: o paraíso liberal. Nessa missão, ele encontra três obstáculos: um é institucional, com um presidente em ultra minoria no Congresso e sem governadores provinciais; o segundo obstáculo é social, com manifestações a futuro contra o governo; o terceiro obstáculo conseguir trazer alívio no curto prazo ou mesmo trazer uma esperança no final do túnel”, explica à RFI o reconhecido cientista político argentino, Andrés Malamud, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, quem divide o seu tempo entre Lisboa e Buenos Aires.

Para o especialista, Milei tem vantagens no médio prazo, mas problemas no curto. A capacidade de resolver essa equação definirá a vitória inicial. “Em 2024, a realidade do mundo vai ajudar a Argentina. Os produtos da Argentina rendem mais, não haverá mais seca, mas uma altíssima produção e exportação. As condições internacionais são espetaculares para a Argentina neste ano. Portanto, Milei tem a expectativa de equilibrar com essas condições internacionais as suas limitações sociais e institucionais”, projeta Malamud.

Rota de colisão entre Executivo, Legislativo e Judiciário

Por enquanto, uma liminar suspendeu a aplicação da reforma trabalhista do decreto que entrou em vigor. Essa reforma trabalhista consiste em flexibilizar regras, diminuir a indenização das demissões e a desfinanciar o caixa dos sindicatos, dando liberdade de escolha aos trabalhadores.

Há mais de 40 pedidos de liminares contra o decreto por inconstitucional. Mais cedo do que tarde, a discussão vai parar no Congresso ou no Supremo Tribunal. Nesta terça-feira (9), o parlamento argentino começou a tratar do segundo pacote com 664 artigos que pretende desregular a economia. Nessas mais de mil medidas está todo o ajuste fiscal do presidente Javier Milei que pretende déficit fiscal zero até o final do ano como forma de evitar uma hiperinflação.

O discurso de uma emergência econômica que ameaça o país tem sido a estratégia de Javier Milei para conseguir a aprovação do Congresso. Se não conseguir, Milei vai acusar os legisladores pela crise desatada.

A Confederação Geral do Trabalho (CGT) convocou uma greve geral para o dia 24 de janeiro. Com isso, Javier Milei se tornará o presidente que mais rápido terá de enfrentar a primeira greve geral com apenas 44 dias de mandato.

A CGT é historicamente ligada ao Peronismo. Durante todo o mandato do governo anterior de Alberto Fernández, apesar da inflação em torno de 200%, não houve nenhuma greve.

“Será um ano de muito conflito institucional, de incerteza econômica e de fragmentação política”, indica à RFI o analista argentino, Federico Merke, professor de Ciências Políticas e de Relações Internacionais da Universidade argentina de San Andrés.

“O conflito institucional será consequência de todas as medidas que Milei quer implementar e que terão limites. Milei pode convocar um plebiscito que não será vinculante, mas que exercerá pressão sobre o Congresso. Por fragmentação política, vemos a oposição peronista muito fragmentada e os legisladores no jogo político de tocar ou de bloquear as reformas. Outros atores desse jogo serão a Justiça e as manifestações populares”, prevê Merke.

Apoio inicial mantido

Javier Milei foi eleito com 55,7% dos votos. Quem votou nele vê em Milei a única chance de mudança. Esse apoio popular se mantém. A consultora Trespuntozero, uma das poucas que acertou o resultado eleitoral, mediu a popularidade de Milei e concluiu que o presidente conserva a sua base de apoio.

Uma maioria de 53,1% vê essas primeiras semanas como positivas. Os que veem como negativa somam 41,5%. Na sua quase totalidade, os que aprovam são os que votaram em Milei e os que reprovam são os que não votaram nele.

No entanto, o apoio cai na hora de avaliar o método Milei de governar através de decretos. Quase metade, 49,5% estão de acordo com o decreto, enquanto 46,9% reprovam. E o motivo para a reprovação é uma suposta inconstitucionalidade das medidas. Portanto, Milei aproveita o seu capital político inicial para tentar avançar rapidamente com profundas reformas.

Governabilidade depende de domar a inflação

O problema é a limitada capacidade de resistência do bolso dos argentinos. “Se Milei conseguir implementar as reformas de uma maneira em que as pessoas sintam algum benefício no próximo semestre, terá uma chance. Mais do que um semestre de dor e sofrimento, os argentinos não aguentam. Isto já está demonstrado: a paciência na Argentina é curta, assim como as expectativas são grandes. A combinação de expectativas grandes e paciência curta não é uma boa receita”, adverte Andrés Malamud.

A vara para medir o sucesso do novo Governo será a redução de uma inflação galopante. Na quinta-feira (11), será divulgado o índice de inflação de dezembro e o todo 2023. Dezembro deve ficar entre 25% e 30%, totalizando cerca de 200% em todo o ano passado.

Os próximos meses serão de inflação em torno de 30% mensais. Entre dezembro e março, a inflação acumulada pode rondar os 100%. O próprio Javier Milei, no seu discurso de posse, antecipou que até março a inflação na Argentina deve variar entre 20% e 40%.

O problema não é a sinceridade do diagnóstico, mas a limitada capacidade de resistência do bolso dos argentinos.

A consultora Trespuntozero aponta que 42,7% dos argentinos acreditam que os resultados devem aparecer nos próximos seis meses, enquanto 40,6% estão dispostos a esperar de seis meses a dois anos.

Março pode ser o ponto de inflexão

Março é o mês em que as famílias voltam de férias, em que os filhos voltam às aulas e no qual os argentinos trocam o vestuário de verão a inverno. É, portanto, o mês de pagar as contas e de novos gastos familiares. Até agora, nenhuma medida trouxe alívio ao bolso e não aparece no horizonte deste trimestre nenhuma luz de esperança.

Nos últimos 30 dias, os combustíveis aumentaram 90% e um novo aumento está previsto para as próximas semanas. Vários produtos básicos tiveram reajuste acima de 100%. Planos de saúde tiveram reajuste de 40% e terão outro de 30% em fevereiro, em sintonia mensal com a taxa de inflação. Também em fevereiro começarão os aumentos de gás e energia elétrica, previstos em 300% para o gás e 200% para a eletricidade.

Em consequência, o consumo em mercados caiu 50%, em combustíveis 20%, outros 20% em materiais da construção. O país entrou velozmente na letal combinação de recessão com alta inflação. O ajuste da economia tem vindo pelo lado da desvalorização da moeda e do salário que se diluem.

“Março é o mês do termômetro para o orçamento familiar. É também o mês em que pode haver greve nas escolas. Pode ser um mês insuportável para as famílias argentinas. Se o governo passar bem por março, pode atravessar o primeiro semestre e ver resultados no meio do ano. Em abril, começa a entrar o dinheiro das exportações agrícolas que podem trazer certo alívio para a economia”, observa Andrés Malamud em entrevista à RFI.

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