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Linha Direta

Risco de golpe está descartado, mas "polarização insana" persiste, diz historiador

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Forças de segurança atentas, reforço militar com dois mil PMs e fechamento de parte da Esplanada dos Ministérios. Tais condições, que deveriam ter sido aplicadas há exatamente um ano, estão sendo colocadas em prática hoje, 8 de janeiro de 2024. No aniversário de um ano da invasão golpista às sedes dos três poderes em Brasília, analista ressalta que falta punir poderosos e blindar o país dos extremistas por meio do combate à injustiça social.        

No domingo, 8 de janeiro, centenas de apoiadores do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro invadiram o exterior do prédio do Congresso em Brasília.
No domingo, 8 de janeiro, centenas de apoiadores do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro invadiram o exterior do prédio do Congresso em Brasília. © EVARISTO SA / AFP
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

O cuidado preventivo das forças de segurança agora tem várias justificativas, a começar pela incômoda lembrança da quebradeira do patrimônio público diante da polícia militar, que não interviu, e de complacentes soldados do Exército, apontam especialistas.

Vem também pela necessidade do poder público em mostrar firme repúdio ao que aconteceu para que a situação não se repita. Mas os atores principais ainda patinam ao definir que tom adotar nesta data, em um país que continua dividido.

As chances de grupos tentarem algo parecido são ínfimas, especialmente porque os vinte primeiros já condenados pela invasão pegaram penas de 14 a 17 anos de reclusão, ou seja, a reação do Supremo Tribunal Federal, capitaneada pelo relator Alexandre de Moraes, tornou-se um inibidor de novos delírios coletivos. Além disso, a situação institucional do Brasil hoje é bem mais estável em relação há um ano.

“O Brasil melhorou muito institucionalmente desde o 8 de janeiro de 2023. Saímos de uma situação de ameaça permanente, de golpe de Estado, protagonizada por Bolsonaro e seus correligionários. E isso deixou de existir. O país pode respirar. As contradições sociais e políticas permanecem muito profundas, mas a maneira de lidar com elas melhorou substancialmente. Agora, se os ataques serviram de lição, eu tenho minhas dúvidas”, afirmou à RFI o analista Daniel Aarão Reis, professor de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense.                                                                                    

Polarização

A dúvida do historiador se deve ao fato de que, ainda que pese todo esse cenário atual mais favorável à democracia, é visível também que persiste em vários nichos da sociedade brasileira uma polarização alimentada por fake news, despejadas nos grupos de mensagens e redes sociais, insistindo na visão de que a paz virá quando o inimigo for aniquilado.

“A polarização pode acontecer em uma democracia, como nos Estados Unidos e como aconteceu aqui entre PT e PSDB, por vinte anos, com debates inflamados, porque a democracia não é o território da harmonia, é o território do conflito, mas do conflito regido por um respeito básico entre os adversários. O tipo de polarização que existe hoje no Brasil é outra, sobretudo protagonizada pela extrema direita, marcada pela perspectiva de eliminação do adversário”, alerta Aarão Reis.

As conclusões, inclusive da CPI dos atos golpistas, são de que as depredações das sedes dos três poderes foram o resultado visível mais impactante de repetidos gestos de afrontamento às instituições levados a cabo pelo bolsonarismo, desde declarações do então presidente contra tribunais até a tentativa de explodir uma bomba nos arredores do aeroporto de Brasília.

Nos bastidores, um dos pontos altos da trama foi a redação da minuta do golpe, encontrada na casa de Anderson Torres, que foi ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e, no dia 8 de janeiro, era secretário (em férias) de segurança pública do Distrito Federal.

As Forças Armadas não endossaram o plano final, mas alimentaram o clima instável ao permanecerem num governo que a todo instante falava em não aceitar o resultado das urnas e, depois, ao dar guarida aos acampados em frente a quartéis que bradavam um repertório explicitamente antidemocrático com pedidos de golpe e intervenção militar, financiados por empresários e apoiados abertamente por políticos.                       

Banco dos réus

“Eu acho que essas investigações estão respeitando o direito ao contraditório, o direito da defesa. Mas eu não tenho visto, entre os investigados, os grandes empresários que financiaram, incentivaram, colaboraram ativamente com isso. E também estão ausentes nessa lista os oficiais militares. Os comandantes dos quartéis protegiam essa gente extremista. E onde estão essas responsabilidades? Os militares são cidadãos de primeira classe e o resto da cidadania é de segunda, terceira e quarta classe? É isso que o Supremo Tribunal Federal vai deixar acontecer?”, inquieta-se o historiador.

Até abril o STF pretende julgar mais 146 acusados, inclusive ex-comandantes da Polícia Militar do Distrito Federal que estavam à frente da corporação naquele histórico dia 8 de janeiro e são suspeitos de omissão. O julgamento deles deve ocorrer em fevereiro.                                                                                      

O presidente Lula vai participar de evento com presidentes dos demais poderes e também convidados no Salão Negro do Congresso, o que fez comandantes das Forças Armadas torcerem o nariz por considerarem demais a exaltação de um enredo ainda delicado para a caserna. Nas ruas, a esquerda também tem conclamado correligionários a participarem de atos pela democracia.

“O golpe foi impedido, mas é preciso cortar todo o mal pela raiz. Vamos às ruas por celeridade nas investigações, sem anistia aos golpistas de todos os níveis e hierarquias. Bolsonaro e os militares envolvidos precisam responder pelos seus crimes”, defende o deputado Ivan Valente (PSOL/SP).

Bem mais discreta quando o assunto são os ataques de um ano atrás, a oposição mais extremista insiste em minimizar as intenções por trás dos atos bolsonaristas. “Quem tem o que comemorar sobre o 8/1? Acho que a exploração da narrativa de golpe mostra. Lula já convocou todos os ministros e agora já surgem estórias mirabolantes sem nenhum indício sequer”, afirmou a deputada Bia Kicis (PL/DF).

Planos golpistas

Às vésperas do primeiro ano da invasão golpista, novas revelações do inquérito conduzido pelo STF reforçam o clima tenso da época. Em entrevista ao jornal O Globo, Alexandre de Moraes afirmou que havia três destinos previstos para ele nos planos dos extremistas, inclusive de enforcá-lo na Praça dos Três Poderes.

“O plano contra o ministro Alexandre de Moraes indigna todos os democratas. Iremos às últimas consequências para identificar e punir todos os responsáveis, que acertarão suas contas com a Justiça e com a história”, afirmou o ministro interino da Justiça, Ricardo Capelli ao assinar, com autoridades do Distrito Federal e da Polícia Federal, o protocolo de segurança para esta segunda-feira.

Blindagem

Nesse desafio de reconhecer que a situação melhorou, mas que é preciso abrir os olhos para evitar a escuridão democrática, há também um ingrediente que impõe reflexão à esquerda e à direita que têm apreço democrático: a urgente necessidade de reduzir o fosso social do país.

“Bolsonaro, assim como Milei na Argentina, chegam ao poder pelo voto porque se desenvolveu na sociedade um desencanto enorme com a democracia. E esse desencanto se fundamenta no fato de que existe uma profunda injustiça social. Políticas que realmente reduzam essa injustiça social é o melhor antídoto contra a extrema-direita”, ressalta Aarão Reis.     

“Quando Lula terminou o segundo mandato, ainda havia uma grande esperança, mas o governo Dilma e o governo Temer afundaram o país numa crise, num desencanto fenomenal. Essa reflexão autocrítica é necessária, assim como empreender políticas que realmente contribuam para diminuir drasticamente a injustiça social, o racismo, a insegurança, algo que o atual governo Lula também não mostrou", completa.

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