“Ficar em cima do muro” é estratégia possível do Brasil hoje sobre a guerra da Ucrânia
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Governo Lula critica invasão russa, mas a pondera sobre condenação unilateral do conflito. Analistas ouvidos pela RFI dizem que a aparente contradição do discurso brasileiro reflete a complexidade política da guerra e interesses comerciais e geopolíticos.
Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília
Na véspera da invasão russa à Ucrânia completar um ano, a Assembleia Geral da ONU votará, nesta quinta-feira (23), uma resolução, sem efeito vinculante, que defende a paz de forma "justa e duradoura" na Ucrânia. O texto reafirma o "compromisso" com a integridade territorial do país e exige a retirada imediata das forças russas. Pedindo o apoio maciço da comunidade internacional, o ministro ucraniano das Relações Exteriores, Dmytro Kuleba, disse que seu país "luta para sobreviver", enquanto "o outro [Rússia] quer matar e destruir". Em outubro do ano passado, uma resolução condenando a anexação de quatro territórios ucranianos pela Rússia foi aprovada por 143 países da ONU.
Na época, o Brasil votou a favor, mas o governo Lula tem dado sinais ambíguos sobre sua posição. A diplomacia brasileira tem trabalhado a fim de construir uma resolução que não apenas condene a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, mas peça a “suspensão de hostilidades” de ambas as partes com vistas à abertura de um diálogo para pôr fim à guerra. O texto com sugestões do Brasil que vai à votação na Assembleia da ONU deixa claro como o governo brasileiro tem pisado em ovos ao tratar do assunto.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a falar em “erro clássico” ao se referir à ação militar de Vladimir Putin e defendeu a soberania dos povos numa entrevista recente a jornalistas em Brasília, mas, ao mesmo tempo, tentou justificar a postura dos russos e negou pedido da Alemanha que queria comprar munição do Brasil para abastecer soldados ucranianos.
“A suposta ambiguidade do discurso do presidente Lula a respeito da guerra na Ucrânia traduz a complexidade política dessa guerra, traduz a posição delicada em que o Brasil se encontra. O Brasil é parte do Brics e, assim, é parceiro da Rússia. E o Brics defende a soberania dos Estados. Um dos pontos básicos do grupo é criticar as consecutivas violações da soberania dos pequenos Estados pelas grandes potências, particularmente pelos Estados Unidos”, disse à RFI Williams Gonçalves, analista em Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
“O ato russo de invadir a Ucrânia deixa o Brics em uma situação difícil, porque Putin está fazendo justamente aquilo que o bloco critica. Mas, por outro lado, a Otan foi ampliando a sua abrangência e avançando pela Europa Oriental na direção das fronteiras da Rússia. Os Estados Unidos e a Otan fizeram isso de provocação. Foi uma armadilha, e Putin caiu na armadilha. O governo Lula sabe perfeitamente disso. Então não pode apoiar publicamente Putin, mas também não pode desconhecer que a Ucrânia está sendo usada como uma ferramenta da Otan para desgastar Putin, desgastar o Exército russo”, ponderou o professor da UERJ.
Outro analista ouvido pela RFI, o professor Nelson Gonçalves Gomes, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília, disse que o Brasil precisa se posicionar de forma clara contra a invasão da Ucrânia, mas também deve pensar nos seus interesses internos. “Tem que condenar porque realmente a Rússia violou o direito internacional. Por outro lado, o Brasil não pode se posicionar na guerra de modo total ao lado da Ucrânia, por exemplo, fornecendo armas porque isso não vai ao encontro dos interesses brasileiros. O Brasil tem necessidade fundamental de comprar da Rússia e da Ucrânia fertilizantes. Eles são a base da parte mais bem-sucedida da economia brasileira, que é o agronegócio.”
“Países não são amigos entre si, apenas partilham de certos interesses provisórios. Países que durante séculos se combateram em determinada situação se tornam amigos. Isso pode acontecer, veja o caso da França e da Inglaterra. Nesse sentido, é importante que o Brasil saiba definir os seus interesses. Isso significa que há aí uma situação delicada na qual cabe à diplomacia brasileira compor, digamos, aspectos aparentemente contraditórios”, apontou o analista da UnB.
Brasil como mediador
Se concordam que ficar em cima do muro faz parte do jogo político e comercial, os analistas ouvidos pela reportagem discordam do papel que o Brasil pode ter na mediação do conflito, que teve nova subida de temperatura esta semana com a visita surpresa do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, à Ucrânia, e com o anúncio do presidente russo, Vladimir Putin, de suspender o acordo entre os dois países sobre controle de armas nucleares.
“Eu acredito que o Brasil pode ter um papel importante para iniciar um diálogo abrangente com vistas a pôr um fim nessa guerra. A diplomacia brasileira tem credibilidade internacional, a despeito desse terrível período que passamos nos últimos quatro anos. Mas temos quadros políticos competentes para isso. E politicamente seria interessante que o país buscasse isso porque integra o Brics e também porque é um defensor da paz mundial”, disse Williams Gonçalves.
“O Brasil não tem a dimensão de um player de peso para se colocar como participante relevante nesse assunto. Podemos ter alguma importância, mas quem vai resolver essa questão, se é que ela será resolvida, serão outros países, com maior poder decisório em escala mundial. Por isso, digo que o país deve se atentar aos seus interesses. Infelizmente em relações internacionais questões puramente humanitárias não têm lugar”, destacou Nelson Gomes.
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